quinta-feira, 19 de fevereiro de 2015

E eu com isso, Phebo? – Sobre uma ode de Odílio

E eu com isso, Phebo? – Sobre uma ode de Odílio

Welington Corporation

Desfraldaram inúmeras bandeiras retalhadas, cobertas de poeira e musgo, desbotadas, carregadas trôpegas pelas mãos cobertas luvas de couro, quando as tropas se aproximaram,
munidas de toda espécie de armas, criadas especialmente para dispersar multidões. Alessandra tropeçava enquanto corria vestida de seu skin-jeans verde, manchado pelos jatos
de espuma catalisada especialmente para esse tipo de evento. Como valquírias de Wagner apossadas da fúria de Fenris, em meio ao Ragnarok de Edda. Como novas filhas de Peneu a fugirem de velhos Phebos. Couraças em riste, tacapes hightec descarregando faíscas invisíveis de uma tensão crescente querendo cessar a tensão reinante, em vão. Pois transpassavam, os  outros estudantes, pintados de verde-amarelo, toscas barricadas improvisadas pelas forças policiais nos limites que separavam o Congresso Nacional da multidão. O céu se iluminava com riscas avermelhadas, criadas pelos tiros de morteiros e pelos fogos que tornavam a cena uma pintura renascentista de Guerra e Paz de Liev Tostói. Adidos do curso de Literatura atiravam sacos de tinta verde e amarela a esmo, salpicavam os escudos dos policiais que retrocediam a coluna armada, enquanto os estudantes cantavam em coro com desdém: - Não sabes de quem foges, por isso, insana, foges. Sou senhor de Delfos e de Claros, de Tenedo e Pátara. Júpiter é meu pai; o futuro, o passado e o presente desvelo!

Já não havia muito que ser feito, pois afluíram de todos os pontos do país, jovens com um único objetivo, tomar a força ao congresso nacional. Não que disso se soubesse algo, nos dias
em que intermináveis caravanas cercavam a capital, obstruindo avenidas, acampando-se sobre
gramados e até em meio das ruas. Trouxeram, por medida de segurança, tropas destacadas de
Goiânia e de Mato grosso do Sul, pousaram seis jatos carregados no aeroporto civil de Brasília,
mas não havia uma guerra, não havia uma invasão estrangeira. Mas havia uma indisfarçada determinação nos rostos quase que flamejantes de quase dois milhões de adolescentes, munidos de milhares de cartazes, divididos em centenas de grupos que serpenteavam aparentemente sem rumo pela capital até que em dado instante se enfileiraram como colunas
de uma centúria romana e ficaram dispostos em completo silencio. Um murmúrio da multidão
interrompia a cena, os literatos, como seriam posteriormente chamados gritavam palavras
cortantes:
- Plantaram no jardim de Delphos, ervas de sabores mortos, essas árvores de Claros, vinhas de
arrogância entre as flores da Tenedo! Surgiram as ervas do roubo, brotaram os frutos de Pátara! Eis que jardim tornou-se mausoléu e quem dele cuidava, fantasmas! Avante filhos do
amanhã, porque chegada é a noite, de arrancar as ervas e renovar as suas sementes!
Na porta do senado o velho segurança olhava aterrorizado à multidão que gritava. Em dado
instante ouviu sibilante, distante, mas límpida a misteriosa frase:
- Vós sabeis com quem lutais, por isso, insanos, lutais. São eles senhores de Delfos e de Claros,
de Tenedo e Pátara. A Júpiter chamam de pai; o futuro, o passado e o presente desvelam! Os céus se romperam com os gritos e até os mais corajosos soldados, vestidos de armaduras especiais, naquela noite, conheceram o medo.
As manifestações tomaram conta do país seis dias antes das eleições para presidente. As campanhas políticas estavam indo de vento-em-popa, o país seguia com algumas crises partidárias e os escândalos de sempre, incluindo novas revelações sobre conduta antiética de duas pessoas próximas a um dos principais candidatos daquele ano.
Até que as imagens da truculência impetrada sobre um grupo de vinte e dois adolescentes do
colégio Pedro Segundo foram divulgadas em centenas de vídeos pelas redes sociais do país. O
que era uma pacífica manifestação, com pequenos cartazes pintados à mão, transformou-se
numa guerra urbana na Central do Brasil. Os noticiários não deram a devida importância ao evento, mas a cena em que uma das meninas era puxada pelo longo rabo de cavalo e jogada
no chão por um policial, absolutamente despreparado para lidar com a situação, foi revisitada
milhões de vezes nos três últimos dias.
Alessandra da Matta Cruz e Serra era a moça que agora ia à frente da multidão, com os cabelos soltos e pintados de azul, o rosto com uma tintura branca, hasteando uma velha bandeira que pertencera a seu bisavô e que um dia estivera estendido na residência de Dom Pedro Segundo, conforme seu as velhas lendas e histórias recontadas de geração em geração,
sobre a amizade que seu bisavô tinha granjeado com o antigo regente. Por isso a bandeira tinha aquela aparência tão velha, tão cheia de manchas. Fora testemunha dos tempos do império e agora tremulava em sua derradeira missão.
Coronel Leopoldo Guimarães, capacitado homem a frente das forças de contenção diante do Congresso, ouviu claramente o rompante extremo:
- Aqui habitam eles, Senhores de Delfos e de Claros, de Tenedo e Pátara. Que a Júpiter chamam de pai; que ao futuro, o passado e o presente desvelam! Não passareis!
Jatos de água bruta dispersavam a multidão, inutilmente, a massa de jovens gritando não se
importava e as ordens para evitar o confronto e a violência diante de milhões de celulares filmando cada cena e pelo menos sete grandes cadeias televisivas presentes, disciplinavam atitudes.
E além do mais, era uma multidão composta de jovens e de adolescentes. Entretanto, as ordens, antes vagas, tornaram-se austeras e tirânicas. Não poderiam entrar, ainda mais porque
aquela era a hora de uma sessão extraordinária. Tomados de surpresa, se encontravam duzentos e doze deputados, cercados, sem ter ideia do que iria acontecer. Os eixos monumentais estavam travados de fortes barricadas policiais. Contudo, havia pelo menos um
milhão de adolescentes na praça dos Três Poderes, fora numero incontável destes nos gramados à frente do Congresso.
Havia alguns equipamentos de som de potencia aparentemente ilimitada, espalhados e camuflados. Quarenta carros modificados com sistemas de som automotivo que deveriam concorrer em feiras de som nacionais, interligadas por uma rede de operadores camuflados e
com microfones dispersos, com tamanha sensibilidade que a respiração dos líderes rugia como
o Niágara em dia de enchente. Mas o que mais irritava era que os microfones iam de boca em
boca, e tinham combinado que falariam em trechos literários, em aforismos e palavras tão anacrônicas que era difícil sua compreensão. E o pior era ter que ouvir Ovídio, o velho poeta
romano. O velho verso de Metamorphose sendo propositalmente metamorfoseado a cada
nova comunicação.
Então se curvaram todos.
O ruído de microfonia encheu o ar enquanto dois milhões de jovens abaixavam-se reverentemente. Menos uma jovem. A trezentos metros do Congresso uma bandeira velha tremulava nas mãos enluvadas de Alessandra. E só ela restava de pé. Sua voz soava como um
lamento, mas o verso podia ser ouvido até nos corredores mais internos do Congresso:
- Senhores de Delfos e de Claros, de Tenedo e Pátara. Trago para vós uma novidade. Vosso pai,
Júpiter, mandou-nos avisar-vos. Já não sois mais senhores. Hoje, vos tomamos Delfos e Claros, Tenedo e Pátara. E a filha de Peneu mandou vos dizer:

- E eu com isso, Phebo?

E dito isso, levantaram três milhões de cabeças. E numa correria desenfreada tomaram ao
Congresso Nacional. As eleições foram atrasadas porque as negociações para retirar os jovens,
munidos de sanduíches, levaram alguns dias. Os duzentos e doze deputados saíram nus, pintados de verde e amarelo, na manhã seguinte. O amanhã havia começado mais cedo que se
supunha para a pátria brasileira.