terça-feira, 29 de julho de 2014

O Ludico em Cantares



O LUDICO EM CANTARES

Preludio a partir do livro O Homem Ludico de Johan Huizinga

Existe uma terceira função, que se verifica tanto na vida humana como na animal, e é tão importante como o raciocínio e o fabrico de objetos: o jogo. Creio que, depois de Homo faber e talvez ao mesmo nível de Homo sapiens, a expressão Homo ludens merece um lugar em nossa nomenclatura. A antropologia e as ciências a ela ligadas têm, até hoje, prestado muito pouca atenção ao conceito de jogo e à importância fundamental do fator lúdico para a civilização. O jogo é fato mais antigo que a cultura, pois esta, mesmo em suas definições menos rigorosas, pressupõe sempre a sociedade humana; mas, os animais não esperaram que os homens os iniciassem na atividade lúdica. É-nos possível afirmar com segurança que a civilização humana não acrescentou característica essencial alguma à idéia geral de jogo. Os animais brincam tal como os homens. Bastará que observemos os cachorrinhos para constatar que, em suas alegres evoluções, encontram-se presentes todos os elementos essenciais do jogo humano. Convidam-se uns aos outros para brincar mediante um certo ritual de atitudes e gestos. Respeitam a regra que os proíbe morderem, ou pelo menos com violência, a orelha do próximo. Fingem ficar zangados e, o que é mais importante, eles, em tudo isto, experimentam evidentemente imenso prazer e divertimento. Essas brincadeiras dos cachorrinhos constituem apenas uma das formas mais simples de jogo entre os animais. Existem outras formas muito mais complexas, verdadeiras competições, belas representações destinadas a um público Desde já encontramos aqui um aspecto muito importante: mesmo em suas formas mais simples, ao nível animal, o jogo é mais do que um fenômeno fisiológico ou um reflexo psicológico. Ultrapassa os limites da atividade puramente física ou biológica. É uma função significante, isto é, encerra um determinado sentido. No jogo existe alguma coisa "em jogo" que transcende as necessidades imediatas da vida e confere um sentido à ação. Todo jogo significa alguma coisa. Não se explica nada chamando "instinto" ao princípio ativo que constitui a essência do jogo; chamar-lhe "espírito" ou "vontade" seria dizer demasiado. Seja qual for a maneira como o considerem, o simples fato de o jogo encerrar um sentido implica a presença de um elemento não material em sua própria essência.
Por que razão o bebê grita de prazer? Por que motivo o jogador se deixa absorver inteiramente por sua paixão? Por que uma multidão imensa pode ser levada até ao delírio por um jogo de futebol?
A intensidade do jogo e seu poder de fascinação não podem ser explicados por análises biológicas. E, contudo, é nessa intensidade, nessa fascinação, nessa capacidade de excitar que reside a própria essência e a característica primordial do jogo. O mais simples raciocínio nos indica que a natureza poderia igualmente ter oferecido a suas criaturas todas essas úteis funções de descarga de energia excessiva, de distensão após um esforço, de preparação para as exigências da vida, de compensação de desejos insatisfeitos
etc., sob a forma de exercícios e reações puramente mecânicos. Mas não, ela nos deu a tensão, a alegria e o divertimento do jogo.
Como a realidade do jogo ultrapassa a esfera da vida humana, é impossível que tenha seu fundamento em qualquer elemento racional, pois nesse caso, limitar-se-ia à humanidade. A existência do jogo não está ligada a qualquer grau determinado de civilização, ou a qualquer concepção do universo. Todo ser pensante é capaz de entender à primeira vista que o jogo possui uma realidade autônoma, mesmo que sua língua não possua um termo geral capaz de defini-lo. A existência do jogo é inegável. É possível negar, se se quiser, quase todas as abstrações: a justiça, a beleza, a verdade, o bem, Deus. É possível negar-se a seriedade, mas não o jogo.
A própria existência do jogo é uma confirmação permanente da natureza supralógica da situação humana. Se os animais são capazes de brincar, é porque são alguma coisa mais do que simples seres mecânicos. Se brincamos e jogamos, e temos consciência disso, é porque somos mais do que simples seres racionais, pois o jogo é irracional. Só se toma possível, pensável e compreensível quando a presença do espírito destrói o determinismo absoluto do cosmos Se verificarmos que o jogo se baseia na manipulação de certas imagens, numa certa "imaginação" da realidade (ou seja, a transformação desta em imagens), nossa preocupação fundamental será, então, captar o valor e o significado dessas imagens e dessa "imaginação". Observaremos a ação destas no próprio jogo, procurando assim compreendê-lo como fator cultural da vida As grandes atividades arquetípicas da sociedade humana são, desde início, inteiramente marcadas pelo ludico. Como por exemplo, no caso da linguagem, esse primeiro e supremo instrumento que o homem forjou a fim de poder comunicar, ensinar e comandar. É a linguagem que lhe permite distinguir as coisas, defini-las e constatá-las, em resumo, designá-las e com essa designação elevá-las ao domínio do espírito. Na criação da fala e da linguagem, brincando com essa maravilhosa faculdade de designar, é como se o espírito estivesse constantemente saltando entre a matéria e as coisas pensadas. Por detrás de toda expressão abstrata se oculta uma metáfora, e toda metáfora é jogo de palavras. Assim, ao dar expressão à vida, o homem cria um outro mundo, um mundo poético, ao lado do da natureza. Em todas as caprichosas invenções da mitologia, há um espírito fantasista que joga no extremo limite entre a brincadeira e a seriedade. Se, finalmente, observarmos o fenômeno do culto, verificaremos que as sociedades celebram seus ritos sagrados, seus sacrifícios, consagrações e mistérios, destinados a assegurarem a tranqüilidade do mundo, dentro de um espírito de puro ludico, tomando-se aqui o verdadeiro sentido da palavra. Ora, é no mito e no culto que têm origem as grandes forças instintivas da vida civilizada: o direito e a ordem, o comércio e o lucro, a indústria e a arte, a poesia, a sabedoria e a ciência. Todas elas têm suas raízes no solo primevo do ludico.
O jogo não é compreendido pela antítese entre sabedoria e loucura, ou pelas que opõem a verdade e a falsidade, ou o bem e o mal. Embora seja uma atividade não material, não desempenha uma função moral, sendo impossível aplicar-lhe as noções de vício e virtude.
Antes de mais nada, o jogo é uma atividade voluntária. Sujeito a ordens, deixa de ser jogo, podendo no máximo ser uma imitação forçada. Basta esta característica de liberdade para afastá-lo definitivamente do curso da evolução natural. Chegamos, assim, à primeira das características fundamentais do jogo: o fato de ser livre, de ser ele próprio liberdade. Uma segunda característica, intimamente ligada à primeira, é que o jogo não é vida "corrente" nem vida "real". Pelo contrário, trata-se de uma evasão da vida "real" para uma esfera temporária de atividade com orientação própria. Toda criança sabe perfeitamente quando está "só fazendo de conta" ou quando está "só brincando". É possível ao jogo alcançar extremos de beleza e de perfeição que ultrapassam em muito a seriedade. É pelo menos assim que, em primeira instância, o ele se nos apresenta: como um intervalo em nossa vida
quotidiana. Todavia, em sua qualidade de distensão regularmente verificada, ele se torna um acompanhamento, um complemento e, em última análise, uma parte integrante da vida em geral. Ornamenta a vida, ampliando-a, e nessa medida toma-se uma necessidade tanto para o indivíduo, como função vital, quanto para a sociedade, devido ao sentido que encerra, à sua significação, a seu valor expressivo, a suas associações espirituais e sociais, em resumo, como função cultural.
O jogo distingue-se da vida "comum" tanto pelo lugar quanto pela duração que ocupa. Ê esta a terceira de suas características principais: o isolamento, a limitação. É "jogado até ao fim" dentro de certos limites de tempo e de espaço. Possui um caminho e um sentido próprios.

É transmitido, toma-se tradição. Pode ser repetido a qualquer momento, quer seja "jogo infantil" ou jogo de xadrez, ou em períodos determinados, como um mistério. Uma de suas qualidades fundamentais reside nesta capacidade de repetição, que não se aplica apenas ao jogo em geral, mas também à sua estrutura interna. Em quase todas as formas mais elevadas de jogo, os elementos de repetição e de alternância (como no refrain) constituem como que o fio e a tessitura do objeto. A limitação no espaço é ainda mais flagrante do que a limitação no tempo. Todo jogo se processa e existe no interior de um campo previamente delimitado, de maneira material ou imaginária, deliberada ou espontânea. Tal como não há diferença formal entre o jogo e o culto, do mesmo modo o "lugar sagrado" não pode ser formalmente distinguido do terreno de jogo. A arena, a mesa de jogo, o círculo mágico, o templo, o palco, a tela, o campo de tênis, o tribunal etc., têm todos a forma e a função de terrenos que o jogo igualmente representa, isto é, lugares proibidos, isolados, fechados, sagrados, em cujo interior se respeitam determinadas regras. Todos eles são mundos temporários dentro do mundo habitual, dedicados à prática de uma atividade especial.
Reina dentro do domínio do jogo uma ordem específica e absoluta. E aqui chegamos a sua outra característica, mais positiva ainda: ele cria ordem e é ordem. Introduz na confusão da vida e na imperfeição do mundo uma perfeição temporária e limitada, exige uma ordem suprema e absoluta: a menor desobediência a esta "estraga o jogo", privando-o de seu caráter próprio e de todo e qualquer valor. É talvez devido a esta afinidade profunda entre a ordem e o jogo que este, como assinalamos de passagem, parece estar em tão larga medida ligado ao domínio da estética. Há nele uma tendência para ser belo. Talvez este fator estético seja idêntico aquele impulso de criar formas ordenadas que penetra o jogo em todos os seus aspectos. As palavras que empregamos para designar seus elementos pertencem quase todas à estética. São as mesmas palavras com as quais procuramos descrever os efeitos da beleza: tensão, equilíbrio, compensação, contraste, variação, solução, união e desunião. O jogo lança sobre nós um feitiço: é "fascinante", "cativante". Está cheio das duas qualidades mais nobres que somos capazes de ver nas coisas: o ritmo e a harmonia. O elemento de tensão, a que acabamos de nos referir, desempenha no jogo um papel especialmente importante.  Tensão significa incerteza, acaso. Há um esforço para levar o jogo até ao desenlace, o jogador quer que alguma coisa "vá" ou "saia", pretende "ganhar" à custa de seu próprio esforço. Uma criança estendendo a mão para um brinquedo, um gatinho brincando com um novelo, uma garotinha jogando bola, todos eles procuram conseguir alguma coisa difícil, ganhar, acabar com uma tensão. O jogo é "tenso", como se costuma dizer. É este elemento de tensão e solução que domina em todos os jogos solitários de destreza e aplicação, como os quebra-cabeças, as charadas, os jogos de armar, as paciências, o tiro ao alvo, e quanto mais estiver presente o elemento competitivo mais apaixonante se torna o jogo. Esta tensão chega ao extremo nos jogos de azar e nas competições esportivas. Embora o jogo enquanto tal esteja para além do domínio do bem e do mal, o elemento de tensão lhe confere um certo valor ético, na medida em que são postas à prova as qualidades do jogador: sua força e tenacidade, sua habilidade e coragem e, igualmente, suas capacidades espirituais, sua "lealdade". Porque, apesar de seu ardente desejo de ganhar, deve sempre obedecer às regras do jogo. Por sua vez, estas regras são um fator muito importante para o conceito de jogo. Todo jogo tem suas regras. São estas que determinam aquilo que "vale" dentro do mundo temporário por ele circunscrito. As regras de todos os jogos são absolutas e não permitem discussão. Uma vez, de passagem, Paul Valéry exprimiu uma idéia das mais importantes: "No que diz respeito às regras de um jogo, nenhum ceticismo é possível, pois o princípio no qual elas assentam é uma verdade apresentada como inabalável". E não há dúvida de que a desobediência às regras implica a derrocada do mundo do jogo. O jogo acaba: O apito do árbitro quebra o feitiço e a vida "real" recomeça. O jogador que desrespeita ou ignora as regras é um "desmancha-prazeres". Este, porém, difere do jogador desonesto, do batoteiro, já que o último finge jogar seriamente o jogo e aparenta reconhecer o círculo mágico. É curioso notar como os jogadores são muito mais indulgentes para com o batoteiro do que com o desmanchaprazeres; o que se deve ao fato de este último abalar o próprio mundo do jogo. Retirando-se do jogo, denuncia o caráter relativo e frágil desse mundo no qual, temporariamente, se havia encerrado com os outros. Priva o jogo da ilusão — palavra cheia de sentido que significa literalmente "em jogo" (de inlusio, illudere ou inludere). Torna-se, portanto, necessário expulsá-lo, pois ele ameaça a existência da comunidade dos jogadores.
A figura do desmancha-prazeres desenha-se com mais nitidez nos jogos infantis. A pequena comunidade não procura averiguar se o desmancha-prazeres abandona o jogo por incapacidade ou por imposição alheia, ou melhor, não reconhece sua incapacidade e acusa-o de falta de audácia. Para ela, o problema da obediência e da consciência é reduzido ao do medo ao castigo. O desmancha-prazeres destrói o mundo mágico, portanto, é um covarde e precisa ser expulso. Mesmo no universo da seriedade, os hipócritas e os batoteiros sempre tiveram mais sorte do que os desmancha-prazeres: os apóstatas, os hereges, os reformadores, os profetas e os objetores de consciência. Todavia, freqüentemente acontece que, por sua vez, os desmancha-prazeres fundam uma nova comunidade, dotada de regras próprias. Os fora da lei, os revolucionários, os membros das sociedades secretas, os hereges de todos os tipos têm tendências fortemente associativas, se não sociáveis, e todas as suas ações são marcadas por um certo elemento lúdico.
O caráter especial e excepcional do jogo é ilustrado de maneira flagrante pelo ar de mistério em que freqüentemente se envolve. Desde a mais tenra infância, o encanto do jogo é reforçado por se fazer dele um segredo.
Representar significa mostrar, e isto pode consistir simplesmente na exibição, perante um público, de uma característica natural. O pavão e o peru limitam-se a mostrar às fêmeas o esplendor de sua plumagem, mas aqui o aspecto essencial é a exibição de um fenômeno invulgar destinado a provocar admiração. Se a ave acompanha essa exibição com alguns passos de dança passamos a ter um espetáculo, uma passagem da realidade vulgar para um
plano mais elevado. Nada sabemos daquilo que o animal sente durante esses atos, mas sabemos que as exibições das crianças mostram, desde a mais tenra infância, um alto grau de imaginação. A criança representa alguma coisa diferente, ou mais bela, ou mais nobre, ou mais perigosa do que habitualmente é. Finge ser um príncipe, um papai, uma bruxa malvada ou um tigre. A criança fica literalmente "transportada" de prazer, superando-se a si mesma a tal ponto que quase chega a acreditar que realmente é esta ou aquela coisa, sem contudo perder inteiramente o sentido da "realidade habitual". Mais do que uma realidade falsa, sua representação é a realização de uma aparência: é "imaginação", no sentido original do termo.
Se passarmos agora das brincadeiras infantis para as representações sagradas das civilizações primitivas, veremos que nestas se encontra "em jogo" um elemento espiritual diferente, que é muito difícil de definir. A representação sagrada é mais do que a simples realização de uma aparência é até mais do que uma realização simbólica: é uma realização mística. Algo de invisível e inefável adquire nela uma forma bela, real e sagrada. Os participantes do ritual estão certos de que o ato concretiza e efetua uma certa beatificação, faz surgir uma ordem de coisas mais elevada do que aquela em que habitualmente vivem. Mas tudo isto não impede que essa "realização pela representação" conserve, sob todos os aspectos, as características formais do jogo. É executada no interior de um espaço circunscrito sob a forma de festa, isto é, dentro de um espírito de alegria e liberdade. Em sua intenção é delimitado um universo próprio de valor temporário. Mas seus efeitos não cessam depois de acabado o jogo; seu esplendor continua sendo projetado sobre o mundo de todos os dias, influência benéfica que garante a segurança, a ordem e a prosperidade de todo o grupo até à próxima época dos rituais sagrados.
Segundo uma velha crença chinesa, a música e a dança têm a finalidade de manter o mundo em seu devido curso e obrigar a natureza a proteger o homem. A prosperidade de cada ano depende da fiel execução de competições sagradas na época das festas. Caso essas reuniões não se realizem, as colheitas não poderão amadurecer.
O ritual é um dromenon, isto é, uma coisa que é feita, uma ação. A matéria desta ação é um drama, isto é, uma vez mais, um ato, uma ação representada num palco. Esta ação pode revestir a forma de um espetáculo ou de uma competição. O rito, ou "ato ritual", representa um acontecimento cósmico, um evento dentro do processo natural. Contudo, a palavra "representa" não exprime o sentido exato da ação, pelo menos na conotação mais vaga que atualmente predomina; porque aqui "representação" é realmente identificação, a repetição mística ou a representação do acontecimento. O ritual produz um efeito que, mais do que figurativamente mostrado, é realmente reproduzido na ação. Portanto, a função do rito está longe de ser simplesmente imitativa, leva a uma verdadeira participação no próprio ato sagrado7. É um fator helping the action out8. A psicologia poderá tentar arrumar a questão definindo o ritual como identificação compensadora, uma espécie de substituto, "um ato representativo devido à impossibilidade de levar a cabo uma ação real e intencional"9. O que é importante para a ciência da cultura é procurar compreender o significado dessas figurações no espírito dos povos que as praticam e nelas crêem. Tocamos aqui no próprio âmago da religião comparada: a natureza e a essência do ritual e do mistério.
Todos os antigos sacrifícios rituais dos Vedas baseiam-se na idéia de que a cerimônia — seja ela sacrifício, competição ou representação, — representando um certo acontecimento cósmico que se deseja, obriga os deuses a provocar sua realização efetiva. Há, portanto, um jogo, no sentido pleno do termo. Deixaremos agora de lado os aspectos especificamente religiosos, concentrando-nos na análise dos elementos lúdicos nos rituais primitivos.
O culto é, portanto, um espetáculo, uma representação dramática, uma figuração imaginária de uma realidade desejada. Na época das grandes festas, o grupo social celebra os acontecimentos principais da vida da natureza levando a efeito representações sagradas, que representam a mudança das estações, o surgimento e o declínio dos astros, o crescimento e o amadurecimento das colheitas, a vida e a morte dos homens e dos animais.
Como escreve Leo Frobenius, a humanidade "joga", representa a ordem da natureza tal como ela está impressa em sua consciência10. Num passado remoto, segundo Frobenius, os homens começaram por tomar consciência dos fenômenos do mundo vegetal e animal só depois, adquirindo as idéias de tempo e espaço, dos meses e das estações, do percurso do sol e da lua. Passaram depois a representar esta grande ordem da existência em cerimônias sagradas, nas quais e através das quais realizavam de novo, ou "recriavam", os acontecimentos representados, contribuindo assim para a preservação da ordem cósmica. E há mais. As formas desse jogo litúrgico deram origem à ordem da própria comunidade, às instituições políticas primitivas. O rei é o sol, e seu reinado é a imagem do curso do sol.
Durante toda sua vida o rei desempenha o papel do sol, e no final sofre o mesmo destino que o sol: deve ser morto, de forma ritual, por seu próprio povo.
A concepção deste processo espiritual defendida por Frobenius é mais ou menos a seguinte: a experiência, ainda inexpressa da natureza e da vida, manifesta-se no homem primitivo sob a forma de "arrebatamento"13. "A capacidade criadora, tanto nos povos quanto nas crianças ou em qualquer indivíduo criador, deriva desse estado de arrebatamento. "Os homens são arrebatados pela revelação do destino". "A realidade do ritmo natural da gênese e da extinção arrebata sua consciência e este fato leva-o a representar sua emoção em um ato, inevitável e como que reflexo"14. Assim, segundo ele, trata-se aqui de um processo espiritual de transformação que é absolutamente necessário. A emoção, o arrebatamento perante os fenômenos da vida e da natureza é condensado pela ação reflexa e elevado à expressão poética e à arte. É esta a maneira mais aproximada para dar conta do processo de imaginação criadora, mas está longe de poder ser considerada uma verdadeira explicação. Continua tão obscuro como antes o caminho que leva da percepção estética ou mística, ou pelo menos metalógica, da ordem cósmica até aos rituais
sagrados.
Diríamos, então, que, na sociedade primitiva, verifica-se a presença do jogo, tal como nas crianças e nos animais, e que, desde a origem, nele se verificam todas as características lúdicas: ordem, tensão, movimento, mudança, solenidade, ritmo, entusiasmo.
Só em fase mais tardia da sociedade o jogo se encontra associado à expressão de alguma coisa, nomeadamente aquilo a que podemos chamar "vida" ou "natureza". O que era jogo desprovido de expressão verbal adquire agora uma forma poética. Na forma e na função do jogo, que em si mesmo é uma entidade independente desprovida de sentido e de racionalidade, a consciência que o homem tem de estar integrado numa ordem cósmica encontra sua expressão primeira, mais alta e mais sagrada. Pouco a pouco, o jogo vai adquirindo a significação de ato sagrado. O culto vem-se juntar ao jogo; foi este, contudo, o fato inicial. Encontramo-nos aqui em regiões difíceis de penetrar, tanto pela psicologia quanto pela filosofia. São questões que tocam no que há de mais profundo em nossa consciência. O culto é a forma mais alta e mais sagrada da seriedade. Como pode ele, apesar disso, ser jogo? Começamos por dizer que todo jogo, tanto das crianças como dos adultos, pode efetuar-se dentro do mais completo espírito de seriedade. Mas irá isto a ponto de implicar que o jogo continua sempre ligado à emoção sagrada do ato sacramentai? Quanto a isto, nossas conclusões são de certa maneira obstruídas pela rigidez de nossas idéias habituais. Estamos habituados a considerar o jogo e a seriedade como constituindo uma antítese absoluta. Contudo, parece que isto não permite chegar ao nó do problema.
Prestemos um momento de atenção aos seguintes aspectos. A criança joga e brinca dentro da mais perfeita seriedade, que a justo título podemos considerar sagrada. Mas sabe perfeitamente que o que está fazendo é um jogo.
Também o esportista joga com o mais fervoroso entusiasmo, ao mesmo tempo que sabe estar jogando. O mesmo verificamos no ator, que, quando está no palco, deixa-se absorver inteiramente pelo "jogo" da representação teatral, ao mesmo tempo que tem consciência da natureza desta. O mesmo é válido para o violinista, que se eleva a um mundo superior ao de todos os dias, sem perder a consciência do caráter lúdico de sua atividade. Portanto, a qualidade lúdica pode ser própria das ações mais elevadas. Mas permitirá isto que prolonguemos a série de maneira a incluir o culto, afirmando ser também meramente lúdica a atividade do sacerdote que executa os rituais do sacrifício? À primeira vista isto parece absurdo, pois, aceitá-lo para uma religião nos obrigaria a aceitá-lo para todas. Assim, nossas idéias de culto, magia, liturgia, sacramento e mistério seriam todas abrangidas pelo conceito de jogo. Ora, quando lidamos com abstrações devemos sempre evitar o exagero de sua importância, e estender demasiado o conceito de jogo não levaria a mais do que a um mero jogo de palavras. Mas, levando em conta todos os aspectos do problema, não creio que seja um erro definirmos o ritual em termos lúdicos. O ato de culto possui todas as características formais e essenciais do jogo, que anteriormente enumeramos, sobretudo na medida em que transfere os participantes para um mundo diferente. Esta identidade do ritual e do jogo era reconhecida sem reservas por Platão, que não hesitava em incluir o sagrado na categoria de jogo. identificação platônica entre o jogo e o sagrado não desqualifica este último, reduzindo-o ao jogo, mas, pelo contrário, equivale a exaltar o primeiro, elevando-o às mais altas regiões do espírito Adotando este ponto de vista, podemos agora definir de maneira mais rigorosa as relações entre o ritual e o jogo. A extrema semelhança das duas formas não nos deixa mais perplexos, e nossa atenção continua presa ao problema de saber até que ponto todos os atos de culto são abrangidos pela categoria do jogo.
Verificamos que uma das características mais importantes do jogo é sua separação espacial em relação à vida quotidiana. É-lhe reservado, quer material ou idealmente, um espaço fechado, isolado do ambiente quotidiano, e é dentro desse espaço que o jogo se processa e que suas regras têm validade. Ora, a delimitação de um lugar sagrado é também a característica primordial de todo ato de culto. Esta exigência de isolamento para o ritual, incluindo a magia e a vida jurídica, tem um alcance superior ao meramente espacial e temporal. Quase todos os rituais de consagração e iniciação implicam um certo isolamento artificial tanto dos ministros como dos neófitos. Sempre que se trata de proferir um voto, de ser recebido numa Ordem ou numa confraria, de fazer um juramento ou de entrar para uma sociedade secreta, de uma maneira ou de outra há sempre essa delimitação de um lugar do jogo. O mágico, o áugure e o sacrificador começam sempre por circunscrever seu espaço sagrado. O sacramento e o mistério implicam sempre um lugar santificado. A extrema semelhança que se verifica entre os rituais dos sacrifícios de todo o mundo mostra que esses costumes devem ter suas raízes em alguma característica fundamental e essencial do espírito humano. É costume reduzir esta analogia geral das formas de cultura a qualquer causa "racional" ou "lógica", explicando a necessidade de isolamento e separação pela ânsia de proteger os indivíduos consagrados de influências maléficas, pois eles, em seu estado de
consagração, são particularmente vulneráveis às práticas dos espíritos malignos, além de constituírem eles mesmos um perigo para os que os rodeiam.
O sábio húngaro Karl Kerényi publicou um estudo sobre a natureza da festa cuja ligação com nosso tema é das mais estreitas19. Segundo Kerényi, também as festas possuem aquele caráter de independência primeira e absoluta que atribuímos ao jogo. "Entre as realidades
psíquicas", diz ele, "a festa é uma entidade autônoma, impossível de se assimilar a qualquer outra coisa que exista no mundo20. Tal como nós em relação ao conceito de jogo, também Kerényi considera que a festa foi tratada de maneira insuficiente pelos estudiosos da cultura. "O fenômeno da festa parece ter sido inteiramente ignorado pelos etnólogos21." O fato real da festa é ignorado, "como se não existisse para a ciência22". Exatamente da mesma maneira que o jogo, poderíamos nós acrescentar.
Em resumo, a festa e o jogo têm em comuns suas características principais. O modo mais intimo de união de ambos parece poder encontrar-se na dança. Segundo Kerényi, os índios Cora, da costa oriental do México, chamam a suas festas religiosas realizadas por ocasião da trituração e da torrefação do milho o "jogo" de seu deus supremo23.
Dos estranhos e bárbaros rituais dos indígenas da África, da América e da Austrália o olhar passa naturalmente para os sacrifícios rituais dos Vedas, os quais contêm já, nos hinos do Rig-Veda, toda a sabedoria dos Upanishads, para as profundamente místicas homologias entre deus, homem e animal na religião dos egípcios, para os mistérios de Orfeu ou de Elêusis. Tanto quanto à forma como quanto à prática, todos estes estão intimamente ligados às chamadas religiões primitivas, mesmo quanto aos pormenores mais cruéis e bizarros. Mas o elevado grau de sabedoria e de verdade que neles vemos, ou julgamos ver, nos impede de a eles nos referirmos com aquele ar de superioridade que, afinal de contas, era igualmente despropositado no caso das culturas '"primitivas". É preciso determinar se esta semelhança formal nos autoriza a aplicar a noção de jogo à consciência do sagrado, à
crença que essas formas superiores contêm. Se aceitarmos a definição platônica do jogo, nada haverá de incorreto ou irreverente em que o façamos. Segundo a concepção de Platão, a religião é essencialmente constituída pelos jogos dedicados à divindade, os quais são para os homens a mais elevada atividade possível. Seguir esta concepção não implica de maneira alguma que se abandone o mistério sagrado, ou que se deixe de considerar este a mais alta
expressão possível daquilo que escapa às regras da lógica. Os atos de culto, pelo menos sob uma parte importante de seus aspectos, serão sempre abrangidos pela categoria de jogo, mas esta aparente subordinação em nada implica o não reconhecimento de seu caráter sagrado.
O hebreu sahaq também associa o riso e o jogo. Em aramaico la'ab significa rir e troçar. Além disso, em árabe e em sírio a mesma raiz significa "babar-se" (talvez devido ao hábito que têm as crianças de formar bolas com a saliva, o que pode muito bem ser interpretado como um jogo Por último, é curioso notar que em árabe la'iba serve para indicar o "jogo" de um instrumento musical, tal como em algumas línguas européias modernas. o latim cobre todo o terreno do jogo com uma única palavra: ludus, de ludere, de onde deriva diretamente lusus. Convém salientar que jocus, jocari, no sentido especial de fazer humor, de dizer piadas, não significa exatamente jogo em latim clássico. Embora ludere possa ser usado para designar os saltos dos peixes, o esvoaçar dos pássaros e o borbulhar das águas, sua etimologia não parece residir na esfera do movimento rápido, e sim na da não-seriedade, e particularmente na da "ilusão" e da "simulação". Ludus abrange os jogos infantis, a recreação, as competições, as representações litúrgicas e teatrais e os jogos de azar. Na expressão lares ludentes, significa "dançar". Parece estar no primeiro plano a idéia de "simular" ou de "tomar o aspecto de". Os compostos alludo, colludo, illudo apontam todos na direção do irreal, do ilusório. Esta base semântica está oculta em ludi, no sentido dos grandes jogos públicos que desempenhavam um papel tão importante na vida romana, ou então no sentido de "escolas". No primeiro caso o ponto de partida semântico é a competição; no segundo, é provavelmente a "prática". Ê interessante notar que ludus, como termo equivalente a jogo em geral, não apenas deixa de aparecer nas línguas românicas mas igualmente, tanto quanto sei, quase não deixou nelas qualquer vestígio. Em todas essas línguas, desde muito cedo, ludus foi suplantado por um derivado de jocus, cujo sentido específico (gracejar, troçar) foi ampliado para o de jogo em geral. É o caso do francês jeu, jouer, do italiano gioco, giocare, do espanhol juego, jugar, do português jogo, jogar, e do mesmo joc, juca8. Deixamos aqui de lado o problema de saber se o desaparecimento de ludus e ludere se deve a causas fonéticas ou semânticas. a tradução de
Marcos X, 34, χαι εμπαιξονονσιν αΰτώ ("e eles troçarão dele") pelas palavras jah bilaikand ina faz parecer mais ou menos certo que o gótico exprimia a idéia do jogo com o mesmo laikan que está na origem da palavra que designa o jogo nas línguas escandinavas, e também aparece, no mesmo sentido, no inglês antigo e no alto e baixo alemão. Nos textos góticos, laikan só aparece no sentido de "saltar". Conforme já vimos, o movimento rápido deve ser considerado o ponto de partida concreto de muitos dos vocábulos que designam o jogo Nenhum exemplo da identidade essencial entre o jogo e o combate nas culturas primitivas pode ser mais decisivo do que aquele que aparece no Antigo Testamento. No Segundo Livro de Samuel (II, 14), Abner diz a Joab:

"Que agora os jovens se ergam e joguem perante nós. (Reg. II, 2-14: Surgant pueri et ludant coram nobis.) E vieram doze de cada lado, e agarrou cada um deles seu companheiro pela cabeça, e cada um deles enterrou sua espada no flanco de seu companheiro, de modo que caíam juntos. E o lugar onde caíram se chamou desde então o Campo dos Fortes."

A tradução ludant é impecável: "que joguem". O texto hebreu emprega aqui uma forma do verbo sahaq, que significa fundamentalmente "rir", assim como "fazer algo jocosamente", e também "dançar".
Evidentemente é impossível que aqui se trate de liberdade poética; o fato é que é possível um jogo ser mortal sem por isso deixar de ser um jogo, o que constitui mais uma razão para não se estabelecer separação entre os conceitos de jogo e de competição21. Isto nos conduz a uma outra conclusão: dada a indivisibilidade entre o jogo e o combate, no espírito primitivo, segue-se naturalmente a assimilação entre a caça e o jogo. Esta se encontra em numerosos aspectos da língua e da literatura, e não há necessidade de nela insistirmos.
Muitos dos heróis da mitologia conseguem ganhar por meio da astúcia ou graças a uma ajuda exterior. Pélops suborna o auriga de Enomeu para que ele coloque cravos de cera nos eixos das rodas. Jasão e Teseu passam suas provas com êxito graças à ajuda de Medéia e Ariadne. Gunther deve sua vitória a Siegfried. No Mahabharata, os kauravas alcançam a vitória fazendo trapaça nos jogos de dados. Frigga engana Wotan para que este conceda a vitória aos lombardos. Os Ases quebram o juramento que fizeram aos gigantes. Em todos estes casos, o ato de superar o outro em astúcia, fraudulentamente, tornou-se ele próprio o motivo da competição, como se fosse um novo tema lúdico5. A indeterminação das fronteiras entre o jogo e a seriedade tem um exemplo perfeito na expressão "jogar na Bolsa". O final da Idade Média assiste, tanto em Gênova como em Antuérpia, ao surgimento do seguro de vida sob a forma de apostas sobre futuras eventualidades de caráter não econômico. Apostava-se, por exemplo, "sobre a vida e a morte de pessoas, o nascimento de um menino ou uma menina, o resultado de viagens e peregrinações, a conquista de várias terras, praças, fortes ou cidades6. Este tipo de contrato, embora houvesse já assumido um caráter puramente comercial, foi diversas vezes proibido sob a alegação de tratar-se de jogo ilegal, entre outros por Carlos V7. Apostava-se sobre a escolha de um novo Papa tal como hoje se aposta em corridas de cavalos8. E ainda no século XVII os contratos de seguro de vida eram conhecidos pelo nome de "apostas".
Os estudos antropológicos têm mostrado de maneira cada vez mais clara que normalmente a vida social primitiva assenta na estrutura antagonística e antitética da própria comunidade, e que todo o mundo espiritual deste tipo de comunidade corresponde a esse profundo dualismo. Por todo o lado encontram-se vestígios desse fato. A tribo é dividida cm duas metades opostas, chamadas fratrias pelos antropólogos, as quais são separadas pela mais rigorosa exogamia. A distinção entre os dois grupos é estabelecida também pelo totem (termo de emprego um tanto duvidoso fora do terreno específico a que pertence, mas muito útil para uso científico). Um indivíduo pode ser homem-corvo ou homem-tartaruga, adquirindo assim todo um sistema de obrigações, tabus, costumes e objetos de veneração próprios da ordem do corvo ou da tartaruga, conforme for o caso. Entre as duas metades da tribo as relações são de competição e rivalidade, mas ao mesmo tempo de ajuda recíproca e mútua prestação de bons serviços. O conjunto destas relações transforma toda a vida pública da tribo numa interminável série de cerimônias, formuladas com a maior precisão e cumpridas com o maior rigor. O dualismo que diversifica as duas metades se estende a todo o mundo conceptual e imaginativo da tribo. Todas as criaturas, todas as coisas têm seu lugar com um ou outro dos dois lados, de tal modo que todo o cosmos é abrangido por essa classificação. Em nenhuma grande cultura a importantíssima influência civilizadora destas competições festivas foi mais claramente elucidada do que no caso da China antiga, graças aos trabalhos de Marcel Granet. Baseando sua reconstrução numa interpretação antropológica dos cantos rituais da China antiga, Granet conseguiu elaborar um estudo das fases primitivas da cultura chinesa, notável tanto por sua simplicidade quanto por seu rigor científico9.
Segundo Granet, na fase mais primitiva os clãs rurais celebravam as festas das estações por meio de competições destinadas a favorecer a fertilidade e o amadurecimento das colheitas. É fato bem conhecido que essa
é uma idéia subjacente à maior parte dos ritos primitivos. No espírito do homem primitivo, toda cerimônia corretamente celebrada, todo jogo ou competição ganho de acordo com as regras, todo sacrifício devidamente realizado, está intimamente ligado à aquisição pelo grupo de uma nova prosperidade. Se os sacrifícios e as danças foram concluídos com sucesso, podemos ficar certos de que tudo está bem, que os poderes superiores nos são propícios, que a ordem cósmica está salvaguardada, que o bem-estar social está garantido para nós e os nossos.
Evidentemente este sentimento não deve ser pensado como o resultado final de uma série de deduções racionais. Trata-se mais de uma consciência da vida, de um sentimento de satisfação cristalizado em uma fé mais ou menos formulada pelo espírito.
Na China primitiva, quase todas as atividades assumiam a forma de uma competição ritual: atravessar um rio, escalar uma montanha, cortar árvores ou colher flores11. O esquema característico das lendas chinesas relativas à fundação tios reinos é o do herói derrotando seus adversários por meio de proezas espantosas e miraculosas demonstrações de força, provando, assim, sua superioridade. Regra geral, o torneio acaba com a morte dos vencidos. Há muitos povos que colocam o jogo de dados no número das práticas religiosas14. Por vezes, as sociedades divididas em fratrias exprimem sua estrutura dualista nas duas cores de seus tabuleiros de jogo ou de seus dados. A palavra sânscrita dyutam significa ao mesmo tempo "lutar" e "jogar aos dados".
Existem grandes afinidades entre os dados e as flechas15. No Mahabharata, o próprio mundo é concebido como um jogo de dados que Siva joga com sua esposa16. As estações, rtu, são representadas sob a forma de seis homens jogando com dados de ouro e prata. Também a mitologia germânica faz referência a um jogo jogado pelos deuses em seu tabuleiro: quando o mundo foi ordenado, os deuses reuniram-se para jogar aos dados, e quando ele renascer de novo após sua destruição, os Ases rejuvenescidos voltarão a encontrar os tabuleiros de jogo em ouro que originariamente possuíam1. A ação principal do Mahabharata assenta no jogo de (lados jogados pelo rei Yudhistira contra os kauravas.
No livro acima referido, G. J. Held tira deste fato diversas conclusões de caráter etnológico. De nosso ponto de vista, o mais importante é o lugar onde o jogo é executado. Geralmente é um simples círculo, dyutamandalam, traçado no solo. O círculo enquanto tal, todavia, reveste-se de um significado mágico. É traçado com o maior cuidado, sendo tomada toda a espécie de precauções contra a possibilidade de haver batota. Não é permitido aos jogadores deixar o terreno antes de terem cumprido todas as suas obrigações. Mas, por vezes, é provisoriamente erigido um recinto especial para o jogo, e esse recinto é considerado terreno sagrado. O Mahabharata consagra todo um capítulo à ereção do recinto dos dados, — sabha — no qual os Pandavas deverão defrontar seus adversários.
Em conclusão, os jogos de azar têm o seu lado sério. Fazem parte integrante do ritual, e Tácito cometeu um erro ao se espantar por ver os germanos jogando dados com todo o empenho, como se fosse uma ocupação séria.
Os fundamentos agonísticos da vida cultural da sociedade primitiva só foram esclarecidos a partir do momento em que a etnologia foi enriquecida por uma rigorosa descrição dos curiosos costumes de certas tribos
índias da Colômbia britânica, que se tornaram conhecidos sob o nome de potlatch20. Em sua forma mais típica, encontrada na tribo dos Kwakiutl, o potlatch é uma grande festa solene, durante a qual um de dois grupos, com grande pompa e cerimônia, faz ofertas em grande escala ao outro grupo, com a finalidade expressa de demonstrar sua superioridade. A única retribuição esperada pelos doadores, e que é devida pelos que recebem, consiste na
obrigação de estes últimos darem por sua vez uma festa, dentro de um certo período, se possível ultrapassando a primeira. Este curioso festival de donativos domina toda a vida comunitária das tribos que o praticam: os rituais, as leis, as artes. Qualquer acontecimento importante pode servir de pretexto para um potlatch, seja um nascimento, uma morte, um casamento, uma cerimônia de iniciação ou de tatuagem, a construção de um túmulo etc. É costume o chefe oferecer um potlatch sempre que constrói uma casa ou um totem. No potlatch, as famílias ou clãs apresentam-se sob sua forma mais brilhante, cantando suas canções sagradas e exibindo suas máscaras, enquanto os feiticeiros, possuídos pelos espíritos do clã, entregam-se a sua fúria. Mas o principal é sempre a distribuição de bens. O
promotor da festa dissipa nesta todas as posses de seu clã. Contudo, o fato de participarem da festa dá aos outros clãs a obrigação de oferecer um potlatch em escala ainda mais grandiosa. Caso contrário, destroem seu nome, sua honra, seu emblema e seus totens, e até seus direitos civis e religiosos. O resultado de tudo isto é que as posses de toda a tribo vão circulando por entre as "grandes famílias", ao acaso. Supõe-se que, originariamente, o potlatch fosse sempre realizado entre duas fratrias da mesma tribo.
Quem oferece um potlatch demonstra sua superioridade, não apenas devido à pródiga distribuição de riquezas mas também, e isto é ainda mais impressionante, pela destruição completa de seus bens, só para mostrar que pode passar sem eles. Além disso, essas destruições são levadas a efeito de acordo com um ritual dramático, e acompanhadas por altivos desafios. A ação assume sempre a forma de uma competição: se um chefe quebra um pote de cobre, ou queima uma pilha de mantas, ou estraçalha uma canoa, seu adversário fica na obrigação de destruir pelo menos o mesmo, e se possível mais. Os destroços são enviados ao rival, como provocação, ou exibidos como sinal de honra. Conta-se dos Tlinkit, tribo aparentada aos Kwakiutl, que quando um chefe queria defrontar um rival matava um certo número de seus escravos, e o outro, para vingar-se, tinha que matar um número ainda maior dos seus.
Marcel Mauss fala da presença, na Melanésia, de costumes exatamente idênticos ao potlatch. Em seu Essai sur le don, aponta vestígios de costumes semelhantes nas culturas da Grécia, da Roma e da Germânia da antigüidade. Granet apresenta exemplos de competições tanto de doação como de destruição na tradição chinesa primitiva. Na Arábia pagã dos tempos pré-islâmicos, essas competições tinham um nome especial, o que prova sua existência como instituição formal. São chamadas mu'aqara, um nomen actionis da terceira forma do verbo 'aqara, que nos velhos dicionários, os quais nada sabiam do pano de fundo etnológico, recebe a definição de "rivalizar em glória cortando as patas dos camelos". Mauss resume mais ou menos o tema tratado por Held da seguinte maneira: "O Mahabharata é a história de um gigantesco potlatch"24. O potlatch, e tudo quanto com ele se relaciona, tem como centro de interesse a vitória, a afirmação de superioridade, a aquisição de glória ou prestígio e, pormenor não destituído de importância, a vingança. Em todos os casos, mesmo quando é apenas uma pessoa que oferece a festa, há dois grupos numa situação de oposição, mas ligados por um espírito que é ao mesmo tempo de hostilidade e de amizade. Para compreender esta atitude ambivalente, é preciso reconhecer que o mais importante no potlatch é ganhá-lo. Os grupos adversários não disputam riquezas nem poder, competem apenas pelo prazer de exibir sua superioridade, em resumo, pela glória. No casamento de um chefe Ma-malekala, descrito por Boas25 o grupo anfitrião declara-se "pronto a iniciar o combate", querendo com isto designar a cerimônia no fim da qual o futuro sogro concede a mão de sua filha. O potlatch possui também alguma coisa de um combate, um elemento de provação e sacrifício. A solenidade decorre sob a forma de um ritual acompanhado de antífonas e danças de mascarados. Esse ritual é extremamente rigoroso: basta a menor infração para invalidar tudo. A tosse ou o riso são castigados com severas penalidades. O mundo espiritual no interior do qual se realizam essas cerimônias é o mundo da honra, da pompa, da fanfarronice e do desafio. É um mundo de cavalaria e de heroísmo, dominado pelos brasões e nomes ilustres, onde prima a nobreza de linhagem. Não é o mundo dos cuidados e da subsistência quotidiana, do cálculo das vantagens e da aquisição de bens úteis. Aqui, as aspirações voltam-se para o prestígio dentro do grupo, para um lugar de destaque, quaisquer sinais de superioridade. As relações e obrigações recíprocas das duas fratrias dos Tlinkit são designadas por uma palavra que significa "manifestar respeito". Estas relações estão constantemente sendo expressas em ações concretas, mediante a troca de serviços e presentes. Um dos mais fortes incentivos para atingir a perfeição, tanto individual quanto social, e desde a vida infantil até aos aspectos mais elevados da civilização, é o desejo que cada um sente de ser elogiado e homenageado por suas qualidades. Elogiando o outro, cada um elogia a si próprio. Queremos ser honrados por nossas virtudes, queremos a satisfação de ter realizado corretamente alguma coisa. Realizar corretamente uma coisa equivale a realizá-la melhor que os outros. Atingir a perfeição implica que esta seja mostrada aos outros; para merecer o reconhecimento, o mérito tem que ser manifesto. A competição serve para cada um dar provas de sua superioridade. E isto se verifica principalmente na sociedade primitiva.
A virtude de um homem de qualidade consiste numa série de propriedades que o tornam capaz de lutar e de comandar. Entre estas ocupam um lugar eminente a generosidade, a sabedoria e a justiça. É perfeitamente natural que em muitas línguas a palavra que designa a virtude derive da idéia de masculinidade ou "virilidade", como por exemplo no latim virtus, que durante muito tempo conservou seu sentido de “coragem" — até ao momento em que
o pensamento cristão se tornou predominante. O mesmo se passa com o árabe muru'a, o qual, do mesmo modo que o grego άφετη, abrange todo o complexo semântico da força, valentia, riqueza, direito, boa conduta, moralidade, urbanidade, boas maneiras, magnanimidade, generosidade e perfeição moral. Em toda sociedade primitiva que seja
saudável, baseada na vida tribal de guerreiros e nobres, floresce um ideal de cavalaria e conduta cavalheiresca, quer seja na Grécia ou na Arábia, no Japão ou na Europa cristã da Idade Média. E o ideal viril da virtude está sempre ligado à convicção de que a honra para ser válida, deve ser publicamente reconhecida, sendo este reconhecimento, se necessário, imposto pela força.
Mesmo em Aristóteles a honra é ainda chamada "o preço da virtude". "Os homens aspiram à honra para se convencerem de seu próprio valor, de sua virtude. Aspiram a ser honrados por seu próprio valor por aqueles que têm a capacidade de julgar38." Portanto, a virtude e a honra, a nobreza e a glória encontram-se desde início dentro do quadro da competição, isto é, do jogo. A vida do jovem guerreiro de nobre extração é um permanente exercício de virtude, uma luta permanente pela honra de sua posição. Este ideal é exprimido de maneira perfeita no famoso verso de Homero: αιεν αφιστευειν χαι υφειφοχον έμεναι αλλων ("ser sempre melhor, ultrapassando os outros")39'. Por isso o interesse da epopéia não depende das proezas militares enquanto tais, e sim da αφιστεια dos heróis individuais. A formação em vista da vida aristocrática conduz à formação para a vida no Estado e para o Estado.
Também aqui a palavra αφετη não possui ainda um sentido puramente ético. Continua significando antes a capacidade do cidadão para suas tarefas na polis, conservando ainda grande parte de sua importância primitiva a idéia nela originalmente contida de exercício por meio de uma competição. O nobre demonstra sua "virtude" por meio de proezas de força, destreza, coragem, engenho, sabedoria, riqueza ou generosidade. Na falta destas, pode ainda distinguir-se numa competição de palavras, isto é, ou ele mesmo louva as virtudes nas quais deseja superar seus rivais, ou manda que elas lhe sejam louvadas por um poeta ou um arauto. Esta exaltação da própria virtude, como forma de competição, transforma-se muito naturalmente em depreciação da do adversário, o que, por sua vez, passa a ser um outro tipo de competição. É extraordinária a importância do papel que estas fanfarronadas e ultrajes ocupam nas mais diversas civilizações. Seu caráter lúdico é indiscutível: basta lembrarmo-nos do comportamento dos garotinhos para classificarmos esses torneios de insultos como uma forma de jogo. Não obstante, é preciso estabelecer uma cuidadosa distinção entre os torneios formais de fanfarronadas ou insultos e as invectivas mais espontâneas que costumam iniciar ou acompanhar o combate armado, embora não seja nada fácil traçar essa linha divisória. Segundo antigos textos chineses, a batalha é uma confusa mistura de fanfarronadas, insultos, altruísmo e cumprimentos. Trata-se mais de uma competição com armas morais, um choque de honras ofendidas, do que um combate armado40. Há toda uma série de atos, alguns dos quais de caráter bastante extraordinário, possuidores de um significado técnico como marcas de vergonha ou de honra para aquele que os pratica ou os sofre. Assim, o gesto de desprezo de Remo, saltando por cima da muralha de Rômulo na alvorada da história de Roma, constitui, segundo a tradição militar chinesa, um desafio obrigatório.
Uma variante desse gesto mostra o guerreiro cavalgando até ao portão do inimigo e calmamente contando as tábuas com seu chicote41. Situam-se na mesma tradição os cidadãos de Meaux que, encontrando-se sobre as muralhas, sacudiram o pó dos chapéus quando os sitiantes dispararam seus canhões. Voltaremos mais adiante a tratar deste tipo de atitude, quando tratarmos do elemento agonístico, ou mesmo lúdico, da guerra. O que neste momento nos interessa é a joute de jactance em regra.

Entre os indígenas das Trobriand, conforme relata Malinowski, encontram-se formas intermediárias entre os torneios de jactância e as competições de riqueza. O valor atribuído aos alimentos não depende apenas de sua utilidade, mas também de suas qualidades como meio de ostentação da riqueza. As habitações yam são construídas de maneira a permitir que se veja do exterior tudo o que encerram, e que se avalie sua riqueza olhando através dos largos interstícios das tábuas. Os melhores alimentos são postos em evidência e os exemplares especialmente valiosos são emoldurados, ornamentados com cores vivas, e pendurados do lado de fora da habitação. Nas aldeias onde reside um grande chefe, os membros comuns da tribo têm que cobrir suas habitações com folhas de coqueiro, para não competirem com a do chefe42. Encontramos nas lendas chinesas um eco de costumes semelhantes na narrativa do festim do mau rei Cheu-Sin, que mandou erguer uma montanha de alimentos sobre a qual podia passar um carro, e mandou escavar um lago cheio de vinho onde podiam navegar barcos à vela. Um letrado chinês descreve o desperdício que acompanha os torneios populares de fanfarronice44.
A competição pela honra pode também, como na China, assumir uma forma invertida, transformando-se numa competição de boas maneiras. A palavra que designa esta última, jang, significa à letra "ceder o lugar a outrem"45. Derrota--se o adversário por ter melhores maneiras, ou por lhe dar precedência. Possivelmente é na China que a competição de cortesia é mais formalizada, mas pode ser encontrada em toda a parte do mundo.
Podemos considerá-la uma competição de fanfarronice invertida, pois a razão desta exibição de delicadeza para com os outros é um profundo interesse pela própria honra.
As competições formais de invectivas e vitupérios eram muito espalhadas na Arábia pré-islâmica, e são especialmente claras suas relações com as competições de destruição da propriedade, um dos aspectos centrais do potlatch. Já fizemos referência ao costume chamado mu'aqara, no qual os adversários cortavam os tendões de seus camelos. A forma básica do verbo ao qual mu'aqara pertence no terceiro grau significa ferir ou mutilar. E entre os significados de mu'aqara encontramos também: conviciis et dictis satyricis certavit cum aliquo — lutar com invectivas e linguagem insultuosa. O que lembra o torneio de destruição dos ciganos egípcios, que tem o nome de vantardise. Mas além de mu'aqara os árabes pré-islâmicos designavam os torneios de destruição e formas aparentadas com dois outros termos técnicos: munafara e mufakhara. Convém assinalar que as três palavras são formadas da mesma maneira. São substantivos verbais derivados da chamada terceira forma do verbo, e é talvez este o aspecto mais interessante de toda a questão. Porque em árabe existe uma forma verbal especial, que pode dar a qualquer raiz o
sentido de competir em alguma coisa, ou ultrapassar alguém em alguma coisa. Quase poderíamos chamar-Ihe uma espécie de superlativo verbal da própria raiz. Além disso, a chamada "sexta forma", derivada da terceira, exprime a idéia de atração recíproca. Assim a raiz hasaba (contar, enumerar) dá muhasaba, competição pela boa reputação; e kathara (exceder em número) dá mukathara, competição em quantidade. Mas voltando a nosso assunto: mujakhara provém de uma raiz que significa "vangloriar-se", ao passo que munafara deriva do campo semântico de "derrota", "pôr em fuga". Existe em árabe um parentesco semântico entre honra, virtude, elogio e glória, exatamente como em grego as mesmas idéias gravitam em torno da αφετη47". No árabe a idéia central é 'irá, que pode ser traduzida por "honra", desde que seja tomada em sentido extremamente concreto. A principal exigência de uma vida nobre é a obrigação de preservar a integridade e a segurança de sua honra. De outro lado, supõe-se que o adversário esteja animado por um ardente desejo de destruir e degradar nosso 'ird com insultos. Tal como na Grécia, também aqui qualquer superioridade física, social ou moral constitui um fundamento de honra e de glória, sendo portanto um elemento de virtude. O árabe tira glória de suas vitórias e sua coragem, do número de seus filhos ou de seu clã, de sua liberdade, sua autoridade, sua força, a acuidade de sua vista ou a beleza de seu cabelo. Tudo isto compõe seu 'izz, 'izza, ou seja, sua superioridade sobre os outros e, conseqüentemente, sua autoridade e seu prestígio.
Os ultrajes e insultos dirigidos ao adversário ocupam um lugar importante nesta exaltação do 'izz pessoal, e possuem a designação técnica de hidja'. As lutas pela honra, os mufakhara, costumavam ser realizadas em datas préfixadas, ao mesmo tempo que as feiras anuais e depois das peregrinações. Os ultrajes e insultos dirigidos ao adversário ocupam um lugar importante nesta exaltação do 'izz pessoal, e possuem a designação técnica de hidja'. As lutas pela honra, os mufakhara, costumavam ser realizadas em datas préfixadas, ao mesmo tempo que as feiras anuais e depois das peregrinações.
As competições travavam-se entre tribos ou clãs inteiros, ou entre indivíduos. Sempre que acontecia dois grupos se encontrarem, tratava-se entre eles uma justa de honra. Havia um porta-voz oficial para cada grupo, o sha'ir (poeta ou orador), que desempenhava um papel importante. Esse costume possuía um caráter nitidamente ritual, servindo para manter acesas as poderosas tensões sociais que davam unidade à cultura árabe pré-islâmica. Mas, o surgimento do Islão veio atenuar este antigo costume, conferindo-lhe uma nova dimensão religiosa ou reduzindo-o a um divertimento de corte. Nos tempos do paganismo era freqüente o mufakhara terminar num massacre e numa guerra tribal. Na tradição grega, encontram-se numerosos vestígios de torneios de injúrias cerimoniais e solenes. Alguns autores afirmam que a palavra iambos significava originalmente "sarcasmo", estando especialmente relacionada com os cantos públicos de insultos e sarcasmos que faziam parte das lestas de Deméter e Dionísio. Julga-se que foi a partir desta tradição de troça em público que surgiu a sátira de Arquíloco, cuja recitação, acompanhada por música, era incluída nas competições. A poesia jâmbica passou, assim, de um costume imemorial de natureza ritual a instrumento de crítica pública. Mesmo o tema das diatribes contra as mulheres parece constituir um vestígio dos cantos alternados de sarcasmo entre os homens e as mulheres que eram realizados no decurso das festas de Deméter e Apoio. Deve estar na base desses costumes um jogo sagrado de emulação pública, o psogo0.
Também a tradição da antigüidade germânica apresenta vestígios muito antigos de duelos de injúrias na história de Alboin, na corte dos gépidas, que foi manifestamente recolhida por Paulo, o Diácono, nas canções épicas. Os chefes lombardos foram convidados para um banquete real por Turisindo, rei dos gépidas. Quando o rei começa a lamentar seu filho Turismundo, morto em combate contra os lombardos, outro de seus filhos levantasse e começa a cobrir os lombardos de injúrias (iniuriis lacessere coepit). Chama-Ihes éguas de pés brancos, acrescentando que cheiram mal. Ao que um dos lombardos responde: "Vai ao campo de batalha de Asfeld, onde poderás verificar a valentia com que essas 'éguas' de que falas sabem defender-se, lá onde estão os ossos de teu irmão, espalhados pelo campo como os ossos de uma velha pileca". O rei evita que os dois passem a vias de fato, "e o banquete foi levado a um fim feliz" (laetis animis conviviam peragunt). Estas últimas palavras revelam claramente o caráter lúdico da altercação. Não resta dúvida que se trata de um exemplo de torneio de insultos. Este existe também na literatura nórdica arcaica, sob uma forma especial chamada mannjafnaôr, "comparação dos homens". Faz parte da festa do Jul, do mesmo modo que a competição de juramentos. Um exemplo é a saga de Orvar Odd. Orvar Odd está incógnit o de visita à corte de um rei estrangeiro e aposta sua cabeça que é capaz de vencer na bebida dois dos homens do rei. A cada vez que um deles passa o corno de beber ao seu rival, vangloria-se de qualquer heroico feito de guerra em que ele esteve presente, enquanto o outro se deixa ficar vergonhosamente ao canto do lume, junto com as mulheres52. À vezes, são dois reis que procuram vencer um ao outro em linguagem jactanciosa. Uma das canções dos Edda, o Harbarosljoô, trata de uma competição deste gênero entre Thor e Odin53. Devemos também incluir no mesmo gênero as disputas de Loki com os Ases, durante uma sessão de bebida54. O caráter ritual destas competições é revelado pela referência expressa ao fato de o recinto onde elas se realizavam ser "um grande lugar de paz" (griaastaar mikill), e de nele não ser permitido a ninguém exercer violência contra o outro, diga este o que disser. Embora todos estes exemplos sejam redações literárias de temas pertencentes a um passado muito remoto, a existência de um pano de fundo ritualístico é demasiado evidente para que se possa considerá-los apenas o produto de uma ficção poética mais tardia. As lendas primitivas irlandesas do porco de Mac Datho e da festa de Bricrend apresentam uma "comparação de homens" semelhante. De Vries está certo da origem religiosa do Mannjafnaôr. A importância que era atribuída a este gênero de insultos é ilustrada de maneira evidente pelo caso de Harald Gormsson, que queria empreender uma expedição punitiva contra a Islândia por causa de um simples epigrama de que fora vítima. Durante todo o período de sua existência, os jogos helênicos permaneceram intimamente ligados à religião, mesmo nas épocas mais tardias em que, à primeira vista, poderiam assumir a aparência dos esportes nacionais puros e simples. Os cantos triunfais de Píndaro, em honra das grandes competições, pertencem inteiramente ao quadro de sua rica poesia sagrada, da qual eles constituem a única parte conservada até nossos dias72. O caráter sagrado do agon (competição)  manifesta-se em toda a parte. O zelo competitivo dos jovens espartanos em submeter-se a dolorosas experiências perante o altar é apenas um exemplo entre as muitas práticas cruéis relacionadas com a iniciação à vida adulta, semelhantes às que podem ser encontradas entre os povos primitivos de toda a Terra. Píndaro mostra um vencedor dos Jogos Olímpicos insuflando uma nova força vital nos pulmões de seu velho avô.
A tradição grega estabelece uma divisão entre as competições: de um lado as públicas ou nacionais, militares e jurídicas, e, de outro, as relacionadas com a força, a sabedoria e a riqueza. Esta classificação parece refletir uma fase agonística, mais primitiva, da cultura. O fato de se chamar "agon" à disputa perante um juiz não deve ser tomado, ao contrário do que pensa Burckhardt74, como uma simples expressão metafórica de uma época mais tardia
mas, pelo contrário, como prova de uma imemorial associação de idéias, à qual mais adiante voltaremos a fazer referência. De fato, houve um tempo em que o julgamento em tribunal foi um agon no sentido restrito do termo.
Era costume entre os gregos organizar competições a propósito de tudo o que oferecesse a possibilidade de uma luta. Os concursos de beleza masculina faziam parte das Panatenéias e das festas de Teseu. Nos simpósios eram organizados concursos de canto, decifração de enigmas, de resistência em se conservar acordado e bebendo. Mesmo neste último caso, o elemento sagrado não está ausente: os πολυποσία e os αχφατοποσία (beber muito e sem mistura) faziam parte da festa de Coeno. Alexandre celebrou a morte de Calanos com um agon ginástico e musical, com prêmios para os melhores bebedores, tendo daí resultado que trinta e cinco dos competidores morreram na hora, e seis deles mais tarde, entre os quais o vencedor75. Notemos de passagem que as competições que consistiam em absorver grandes quantidades de comida e bebida estão também ligadas ao potlatch.

O Ludico no Direito
Um antigo juiz escreveu-me o seguinte: "O estilo e o conteúdo das intervenções nos tribunais revelam o ardor esportivo com que nossos advogados se atacam uns aos outros por meio de argumentos e contra-argumentos (alguns dos quais são razoavelmente sofisticados). Sua mentalidade por mais de uma vez me fez pensar naqueles oradores dos processos adat7' que, a cada argumento, espetam na terra uma vara, sendo considerado vencedor aquele que no final puder apresentar o maior número de varas". O caráter lúdico da prática judicial foi fielmente observado por Goethe em sua descrição de uma sessão do tribunal de Veneza, realizada no palácio dos Doges. Dada esta fraqueza dos padrões éticos, o fator agonístico (competitivo)  vai ganhando imenso terreno na prática judicial à medida que recuamos no tempo. E, à medida que o elemento agonístico vai aumentando, o mesmo acontece com o fator sorte, e daqui resulta que depressa nos encontramos na esfera lúdica. Estamos perante um mundo espiritual em que a idéia da decisão por oráculos, pelo juízo divino, pela sorte, por sortilégio — isto é, pelo jogo — e a da decisão por sentença judicial fundem-se num único complexo de pensamento. E ainda hoje reconhecemos o caráter absoluto dessas decisões todas as vezes que, quando não conseguimos ser nós próprios a decidir qualquer coisa, resolvemos "tirá-la à sorte". A vontade divina, o destino e a sorte parecem a nossos olhos entidades mais ou menos distintas, ou pelo menos procurando estabelecer entre elas uma distinção conceptual. Mas, para o espírito primitivo, são mais ou
menos equivalentes. Pode-se conhecer o "destino" fazendo que ele se pronuncie. Para conhecer o oráculo, é preciso recorrer à sorte. Pode-se jogar com paus, com pedras, ou abrir à sorte as páginas do livro sagrado, e o oráculo responderá. Assim o Exodo, XXVII, 30, ordena a Moisés que "ponha no peitoral o urim e o tummin" (sejam estes o que forem), a fim de que Aarão "possa julgar os filhos de Israel em seu coração perante o Senhor continuamente". O peitoral é usado pelo grande sacerdote, e é por intermédio deste que o sacerdote Eleazar pede conselho, em Números, XXVII, 21, em favor de Josué, "segundo o julgamento de Urim". De maneira semelhante, em I Samuel, XIX, 42, Saul ordena que seja tirada a sorte entre ele e seu filho Jônatas. As relações entre o oráculo, a sorte e o julgamento são ilustradas de maneira perfeitamente clara nestes exemplos. Também na Arábia pré-islâmica, encontra-se este tipo de sortilégio9. E, afinal, não será fundamentalmente o mesmo a balança sagrada na qual Zeus, na llíada, pesa as possibilidades que cada homem, antes do início da batalha, tem de morrer? "Então o Pai estendeu os dois pratos de ouro e colocou neles as duas porções de morte amarga, uma para os troianos domadores de cavalos e outra para os aqueus cobertos de bronze”
muito mais tarde. Umas das figuras que se encontram no escudo de Aquiles, segundo a descrição do oitavo livro da llíada, representa um julgamento com os juízes sentados no interior do círculo sagrado, estando no centro da cena os "dois talentos de ouro" (δνό χφυσοίο τάλαντα), que se destinam àquele que proferir a sentença mais justa11. Em geral, consideram-se esses dois talentos como a quantia em dinheiro disputada pelas duas partes. Mas, bem vistas as coisas, eles parecem ser mais um prêmio que um objeto de litígio; seriam, portanto, mais adequados a um jogo do que a uma sessão de tribunal. Além disso, convém notar que originariamente talanta significava "balança". Creio, assim, que o poeta tinha em mente uma pintura em vaso que mostrava dois litigantes sentados cada qual em um dos pratos de uma balança, a verdadeira "balança da justiça", na qual a sentença era dada mediante uma pesagem segundo o costume primitivo, isto é, por oráculo ou pela sorte. Este costume ainda não era conhecido na época em que foi composto o poema, e daí resultou que talanta, os dois pratos da balança, foi considerado, devido a uma transposição de significado, como dinheiro. O grego δίχη (direito, justiça) possui uma escala de significados que vai desde o puramente abstrato até o mais declaradamente concreto. Pode significar a justiça enquanto conceito abstrato, ou uma divisão eqüitativa, ou uma indenização, ou mais ainda: as partes num julgamento dão e recebem δίχη, os juízes atribuem δίχη. Significa também o próprio processo jurídico, o veredicto e a punição. Embora se possa supor que os significados mais concretos de uma palavra são os mais antigos, Werner Jaeger defende, neste caso, o ponto de vista contrário.
Segundo ele, o significado abstrato é o mais primitivo, e o concreto deriva dele12. Isto não me parece compatível com o fato de serem precisamente as abstrações — δίχαιο, eqüitativo, e δίχαιοσύνη], eqüidade — formadas em seguida a partir de dikê. A relação acima discutida entre a administração da justiça e a prova da sorte deveria, pelo contrário, orientar-nos no sentido da etimologia expressamente rejeitada por Jaeger, a qual faz derivar δίχη de διχέίν, arremessar ou lançar, embora seja evidente a existência de uma afinidade entre δίχη e δείχνυμι. Em hebraico também há uma associação idêntica entre "direito" e "arremessar", pois thorah (direito, justiça, lei) possui evidentes afinidades com uma raiz que significa tirar à sorte, disparar, e a sentença de um oráculo. Também é significativo que, nas moedas, a figura de Dikê por vezes se confunda com a de Tykê, a deusa do destino incerto. Também ela segura uma balança. J. E. Harrison afirma em sua Themis: "Não é que haja um 'sincretismo' tardio entre estas figuras divinas; ambas partem de uma mesma concepção, e depois divergem". Também na tradição germânica verifica-se a presença . da associação primitiva entre a justiça, o destino e a sorte. A palavra holandesa lot conserva até hoje o sentido do destino do homem — aquilo que lhe é destinado ou enviado (Schicksal em alemão) — e designa também o sinal material da sorte, como por exemplo o palito de fósforo mais comprido ou mais curto, ou um bilhete de loteria. É difícil decidir qual dos dois significados é o mais original, porque no pensamento primitivo as duas idéias estão fundidas em uma só. Zeus segura os divinos decretos do destino e da justiça em uma mesma balança. Os Ases jogam aos dados o destino do mundo15. O espírito primitivo não distingue, como manifestações da Vontade Divina, entre o resultado de uma prova de força, ou o de uma luta armada, ou a maneira como cai um punhado de pedras ou de pauzinhos. A leitura da sorte através das cartas é um costume com profundas raízes no passado humano, numa tradição que é muito mais remota do que as próprias cartas. Talvez o problema fique mais claro se dedicarmos agora nossa atenção a um dos aspectos mais notáveis da íntima relação entre a cultura e o jogo, a saber, os concursos de tambor e os concursos de canto dos esquimós da Groenlândia. Trataremos deste assunto um pouco mais detidamente, porque, neste caso, estamos perante uma prática ainda existente (ou que pelo menos ainda recentemente o era), na qual a função cultural que conhecemos como jurisdição não se separou ainda da esfera do jogo5.
Quando um esquimó tem alguma queixa contra outro, desafia-o para um concurso de tambor (Troinmesang, em dinamarquês). O clã ou tribo se reúne festivamente, todos com seus melhores trajos e num ambiente de alegria. Os dois adversários passam depois a atacar-se sucessivamente um ao outro com canções insultuosas acompanhadas por tambor, nas quais cada um censura os malefícios do outro. Não se estabelece distinção alguma entre acusações com fundamento, ditos de espírito destinados a divertir o público e a calúnia pura e simples. Por exemplo, um cantor enumerou todas as pessoas que haviam sido devoradas pela mulher e a sogra de seu adversário durante um período de penúria, o que levou todo o público a desfazer-se em lágrimas. Estes cantos insultuosos são acompanhados por toda a espécie de ofensas físicas ao adversário, como espirrar ou soprar na cara dele, dar-lhe cabeçadas, abrir-lhe os maxilares, amarrá-lo a uma estaca da tenda — tendo o "acusado" a obrigação de suportar sem protestar, permitindo-se apenas um riso de troça. A maior parte dos espectadores acompanha os estribilhos das canções, aplaudindo e incitando os adversários. Outros se limitam a dormir um pouco. Durante as pausas os contendores conversam em termos amigáveis. As sessões deste gênero de competição podem prolongar-se por vários anos, em que os adversários aproveitam para inventar novas canções e descobrir novas malfeitorias para denunciar. Por fim, são os espectadores que decidem quem é o vencedor. Na maior parte dos casos, a amizade é imediatamente restabelecida, mas, por vezes, acontece uma família emigrar devido à vergonha de ter sido derrotada.
É possível a uma pessoa estar participando, ao mesmo tempo, em diversos concursos de tambor. As mulheres também podem participar.
É aqui da maior importância o fato de, entre as tribos que as praticam, estas competições desempenharem o papel de decisões jurídicas. Não existe qualquer forma de jurisdição além dos concursos de tambor. Estes são os únicos meios de resolver as dissensões, e não existe qualquer outra maneira de influenciar a opinião pública.
Mesmo os assassinos são denunciados desta curiosa maneira. A vitória num concurso de tambor não é seguida por qualquer espécie de sentença. Essas competições são, na grande maioria dos casos, provocadas pelos mexericos das mulheres. É preciso distinguir entre as tribos que praticam esse costume como meio de administração da justiça e aquelas para as quais ele constitui apenas um divertimento festivo. As violências autorizadas são estabelecidas de diferentes maneiras: permite-se bater ou apenas amarrar etc. Além do concurso de tambor, os conflitos são, por vezes, resolvidos por uma luta a murro ou corpo a corpo. Trata-se aqui, portanto, de um costume cultural que desempenha a função judicial sob uma forma perfeitamente agonística, sem contudo deixar de constituir um jogo no sentido mais próprio do termo. Tudo decorre no meio de risos e da maior alegria, porque o que mais importa é conseguir divertir o público. "Da próxima vez", diz Igsiavik, "vou fazer uma canção nova. Vai ser muito divertido, e vou amarrar o outro a uma estaca da tenda". Não há dúvida que os concursos de tambor são a principal fonte de diversão para toda a população. Se não houver uma disputa que sirva de pretexto, os concursos mesmo assim se realizam, pelo puro divertimento que proporcionam. Em certas ocasiões, como demonstração de talento fora do comum, as canções assumem a forma de enigmas.
Nas Atenas de Péricles e Fídias, a eloquência jurídica ainda era principalmente uma competição de habilidade retórica, na qual eram permitidos todos os artifícios de persuasão que fossem possíveis de imaginar. Considerava-se o tribunal e a arena política como os dois lugares por excelência onde a arte podia ser aprendida. Esta arte, juntamente com a violência militar, o roubo e a tirania, constitui a "caça ao homem" definida no Sofista de Platã31. Era possível aprender com os sofistas a transformar uma má causa numa boa causa, e até conseguir fazê-la prevalecer. O jovem que entrava na vida política geralmente iniciava sua carreira acusando alguém num processo escandaloso. Também em Roma durante muito tempo foi considerado legítimo todo e qualquer meio de prejudicar o adversário num julgamento. As partes vestiam-se de luto, suspiravam, gemiam, invocavam em altas vozes o bem comum, rodeavam-se de grande número de testemunhas e clientes, procurando impressionar o tribunal. Em resumo, faziam tudo aquilo que nós hoje fazemos. Basta lembrar o advogado que, no processo Hauptmann, deu palmadas na Bíblia e fez tremular a bandeira americana, ou seu colega holandês que, num sensacional processo criminal, reduziu a pedaços um relatório psiquiátrico. Littmann descreve da seguinte maneira um julgamento na Abissínia33: "Numa oratória cuidadosamente estudada e extremamente hábil o acusador desenvolve sua argumentação O humor, a sátira, alusões sutis, provérbios apropriados à circunstância, o escárnio e o frio desprezo, acompanhados de vez em quando pela mais viva gesticulação e por tremendos berros, tudo isso tende a reforçar a acusação e a confundir o acusado".

E assim ad infinitum

Segundo a tradição, a guerra entre as duas cidades da Eubéia, Calcis e Eretria, no século VII antes de Cristo, desenrolou-se inteiramente sob a forma de uma competição. Um pacto solene contendo as regras estabelecidas foi previamente depositado no templo de Artemisa. Nele eram indicados o momento e o local do combate. Eram proibidos todos os projéteis, dardos, flechas, ou fundas, sendo permitidas apenas a espada e a lança. Há outro exemplo mais conhecido, embora menos ingênuo. Após a batalha de Salamina, os gregos vitoriosos navegaram para o Istmo, a fim de distribuir prêmios, aqui chamados aristeia, àqueles que mais se haviam distinguido durante a batalha. Os chefes deviam depositar seus votos no altar de Poseidon, indicando um primeiro e um segundo candidato. Cada um dos chefes se colocou a si mesmo em primeiro lugar, e a maior parte deles votou em Temístocles para segundo, de modo que este último obteve a maioria. Mas os problemas de inveja surgidos entre eles impediram a ratificação deste veredicto

Os acampamentos são sempre cuidadosamente orientados em direção aos quatro cantos do zodíaco. Tudo o que dizia respeito à organização de um acampamento militar, em épocas culturais como a China antiga, era prescrito da maneira mais rigorosa e possuía um significado sagrado, porque o acampamento seguia o modelo da cidade imperial, e esta por sua vez seguia o modelo do céu. Estes pormenores mostram claramente que tudo isto é abrangido pela esfera do sagrado19. Os acampamentos militares romanos também apresentavam vestígios de sua origem ritualística, conforme afirmam F. Muller e outros. Embora na Idade Média cristã esses vestígios tivessem desaparecido completamente, a suntuosidade e o esplendor da decoração do acampamento de Carlos, o Temerário, no cerco de Neuss, em 1475, prova a estreita relação existente entre a guerra e o torneio, e também, conseqüentemente, o jogo.
O samurai japonês era de opinião que o que é sério para o homem comum não passa de um jogo para o valente. O supremo mandamento de sua vida é o nobre autocontrole em face do perigo e da morte. A competição de linguagem insultuosa, que anteriormente referimos, pode assumir a forma de uma prova de resistência, numa sociedade em que uma conduta sóbria e cavalheiresca é prova de um estilo de vida heróico. Um dos sinais deste heroísmo é o completo desprezo que o homem de espírito nobre professa por todas as coisas materiais. O nobre japonês mostra sua educação e a superioridade de sua cultura não sabendo, ou pretendendo não saber, o valor das moedas. Um príncipe japonês, Kenshin, que estava em guerra contra um outro príncipe chamado Shingen, soube que um terceiro senhor feudal, embora não estivesse em conflito aberto com o príncipe Shingen, havia cortado o fornecimento de sal deste último.
Em vista disso, o príncipe Kenshin ordenou a seus súditos que enviassem sal ao inimigo, exprimindo seu desprezo por essa luta econômica através das seguintes palavras: "Não combato com sal, e sim com a espada”!

O LUDICO E O ENIGMA

A surpreendente semelhança que caracteriza os costumes agonísticos em todas as culturas talvez tenha seu exemplo mais impressionante no domínio do próprio espírito humano, quer dizer, no do conhecimento e da sabedoria. Para o homem primitivo as proezas físicas são uma fonte de poder, mas o conhecimento é uma fonte de poder mágico. Para ele lodo saber é um saber sagrado, uma sabedoria esotérica capaz de obrar milagres, pois todo conhecimento está diretamente ligado à própria ordem cósmica. A ordem das coisas, decretada pelos deuses e conservada pelo ritual para a preservação da vida e a salvação do homem, esta ordem universal ou rtam, como era chamada em sânscrito, tem sua mais poderosa salvaguarda no conhecimento das coisas sagradas, de seus nomes secretos e da origem do mundo. É por isso que há competições nesse tipo de conhecimento nas festas sagradas, pois a palavra pronunciada tem uma influência direta sobre a ordem do mundo. A competição em conhecimentos esotéricos está profundamente enraizada no ritual, e constitui uma parte essencial deste. As perguntas que os sacrificadores fazem uns aos outros, cada um por sua vez ou mediante desafios, são enigmas no sentido pleno do termo, exatamente idênticos, salvo em sua significação sagrada, às adivinhas de salão. É na tradição védica que se pode ver mais claramente a função dessas competições rituais de enigmas. Nos grandes sacrifícios solenes, elas constituíam uma parte da cerimônia tão essencial como o sacrifício propriamente dito. Os brâmanes competiam em jatavidya conhecimento das origens, ou em brahmodya, cuja tradução mais aproximada seria "expressão das coisas sagradas". Estas designações mostram claramente que as perguntas feitas possuíam um caráter predominantemente cosmogônico. Vários dos hinos do Rigveda encerram a produção poética direta dessas competições. No hino Rigveda 1, 64, algumas das perguntas dizem respeito a fenômenos cósmicos, e outras às particularidades rituais do
sacrifício:
"Interrogo-vos sobre a extremidade mais longínqua da terra, pergunto-vos onde está o umbigo da terra. Interrogo-vos sobre o esperma do garanhão, pergunto-vos qual é a mais alta instância da palavra"1.
No hino VIII, 29, dez enigmas típicos descrevem os atributos das principais divindades, seguindo-se a cada resposta o nome de uma dessas divindades2:
"Um deles tem a pele marrom avermelhada, é multiforme, generoso, jovem; usa ornamentos de ouro (Soma). Em seu seio desceu um ser refulgente, o deus sábio por excelência (Agni), etc.".
O elemento predominante destes hinos é sua forma de enigma, cuja solução depende do conhecimento do ritual e - de seus símbolos. Mas esta forma de enigma encerra a mais profunda sabedoria a respeito das origens da existência. Paul Deussen, com uma certa razão, chama ao Rigveda X, 129 "provavelmente o mais admirável texto filosófico que chegou desde os tempos antigos até nós".
"Então, o ser não era, nem o não-ser. O ar não era, nem o firmamento acima dele. O que se movia? Onde? Sob a guarda de quem? E a profundeza do abismo era toda água? "Então, a morte não era, nem a não-morte; não havia distinção entre o dia e a noite. Nada respirava salvo Aquilo, cm si mesmo sem vento. Em parte alguma havia algo além de Aquilo". A forma interrogativa do enigma foi aqui em parte suplantada pela forma afirmativa, mas a estrutura poética do hino continua refletindo seu caráter original de enigma. Depois do verso 5 volta a aparecer a forma interrogativa:
"Quem sabe, quem dirá aqui, de onde nasceu e de onde veio esta Criação?"
Uma vez aceite que este hino deriva da canção-enigma ritual, a qual por sua vez é a redação literária de concursos de enigmas que efetivamente se realizaram, fica estabelecida da maneira mais convincente possível a ligação genética entre o jogo de enigmas e a filosofia esotérica. Em alguns dos hinos do Atharvaveda, como por exemplo em X, 7 e 8, parece haver séries inteiras de perguntas enigmáticas, agrupadas sob um denominador comum, pouco importando que a questão seja resolvida ou fique sem resposta:
"Onde vão os meios meses, onde vai o ano a que eles se juntam? Onde vão as estações -— dizei-me qual é seu skambha!5 Para onde correm, em seu desejo, as duas donzelas de formas diferentes, o dia e a noite? Para onde, em seu desejo, correm as águas? Dizei-me qual é seu skambha!
"Como pode o vento não parar, nem o espírito repousar? Por que as águas, desejosas da verdade, jamais param de correr"?
O pensamento arcaico, arrebatado pelos mistérios do Ser, encontra-se aqui situado no limite entre a poesia sagrada, a mais profunda sabedoria, o misticismo e a mistificação verbal pura e simples. Não compete a nós dar conta de cada um dos elementos particulares destas efusões. O poeta-sacerdote está constantemente batendo à porta do Incognoscível, ao qual nem ele nem nós podemos ter acesso. Sobre esses veneráveis textos, tudo o quepodemos dizer é que neles assistimos ao nascimento da filosofia, não em um jogo inútil, mas no seio de um jogo sagrado. A mais alta sabedoria é praticada sob a forma de uma prova esotérica. Pode-se observar de passagem que o problema cosmogônico de saber como o mundo surgiu constitui uma das preocupações fundamentais do espírito humano. A psicologia experimental infantil mostrou que uma grande parte das perguntas feitas pelas crianças de seis anos possui um caráter autenticamente cosmogônico, como por exemplo o que faz a água correr, de onde vem o vento, o que é estar morto etc.7.
O concurso de enigmas está longe de constituir um simples divertimento, constitui um elemento essencial da cerimônia do sacrifício. A resolução dos enigmas é tão indispensável quanto o próprio sacrifício8. Ela exerce uma certa pressão sobre os deuses. Nas Celebes centrais, entre os Toradja, encontra-se um interessante paralelo com esse antigo costume védico9. Em suas festas a parte destinada aos enigmas é estritamente limitada no tempo, começando no momento em que o arroz fica "prenhe" e prolongando-se até à colheita, e naturalmente a resolução dos enigmas é considerada favorável a esta. De cada vez que um enigma é resolvido, o coro canta: "Sai, arroz, saiam, gordas espigas, do alto da montanha ou do fundo dos vales!" Durante a época que precede imediatamente
este período todas as atividades literárias são proibidas, pois poderiam prejudicar o crescimento do arroz. A mesma palavra wailo significa tanto "enigma" quanto "painço", o cereal que foi substituído pelo arroz como alimento popular10. Pode-se acrescentar o exemplo exatamente paralelo dos grisões da Suíça, onde, segundo se diz11, "os habitantes se entregam às mais loucas excentricidades para ajudar o trigo a crescer melhor" (thorechten atentem treiben, dass ihnen das korn destobas geraten solle).
O enigma é uma coisa sagrada cheia de um poder secreto e, portanto, é uma coisa perigosa. Em seu contexto mitológico ou ritualístico, ele é quase sempre aquilo que os filólogos alemães chamam de Halsrãtel ou "enigma capital", em que se arrisca a cabeça caso não se consiga decifrá-lo. A vida do jogador está em jogo. Um corolário disto constitui a formação de um enigma que ninguém consiga resolver como sendo considerada a mais alta manifestação de sabedoria. Ambos estes temas encontram-se reunidos na velha lenda hindu do rei Yanaka, que realizou um concurso de enigmas teológicos entre os brâmanes que assistiam a seu sacrifício solene, oferecendo um prêmio de mil vacas13. O sábio Yaj-flavalkya, considerando certa a vitória, mandou que as vacas lhe fossem previamente entregues e, naturalmente, derrotou seus adversários. Um destes, Vidaghdha Sakalya, verificando ser incapaz de resolver um enigma, perdeu literalmente a cabeça, a qual se separou de seu corpo e lhe caiu no colo. Esta estória é sem dúvida uma versão pedagógica do tema segundo o qual a incapacidade de responder era punida com a pena capital.
Finalmente, quando ninguém mais se atreve a fazer perguntas, Yajnavalkya triunfalmente exclama:
"Reverendos brâmanes, se algum de vós deseja fazer alguma pergunta que a faça, ou todos vós, se quiserdes; ou então permiti que eu faça uma pergunta a um de vós, ou a todos, se quiserdes"! É claro como o dia o caráter perfeitamente lúdico desta competição. A própria tradição sagrada participa do jogo, e é impossível definir o grau de seriedade com que a estória foi aceita no cânon sagrado, grau que aliás em última análise é tão irrelevante como o problema de saber se efetivamente alguém perdeu a cabeça por ser incapaz de resolver um enigma. Não é este o aspecto mais interessante da questão. O principal, o que é realmente notável, é o tema lúdico enquanto tal.
Também na tradição grega encontra-se o tema da solução de enigmas e da pena de morte na estória dos videntes Calcas e Mopsos. Alguém vaticinou que Calcas morreria se alguma vez encontrasse um outro vidente mais sábio do que ele. Um dia encontra Mopsos e disputa com ele um concurso de enigmas, que é ganho por Mopsos.
Calcas morre de desgosto, ou mata-se de despeito, e seus discípulos tornam-se seguidores de Mopsos14. Creio ser evidente neste caso a presença do tema do enigma fatal, embora sob forma corrompida. O concurso de enigmas em que a vida é posta em jogo é um dos temas principais da mitologia dos Eddas.
No Vajthrúdnismal, Odin mede-se em sabedoria com o sapientíssimo gigante Vafthrúdnir, cada um fazendo alternadamente perguntas ao outro. As perguntas são de caráter mitológico e cosmogônico, semelhantes às dos textos védicos que citamos: De onde vieram o Dia e a Noite, o Inverno e o Verão, e o Vento? No Alvissmã, Thor pergunta ao anão Alvis como são chamadas as diversas coisas entre os Ases, os Vanes (o panteão secundário dos Eddas), os homens, os gigantes, os anões, e por último no Hel; mas antes de terminar a competição o dia nasce, e o anão é posto a ferros. O Canto de Fjõlsvinn possui forma semelhante, assim como os Enigmas do rei Heidrek, o qual fez a promessa de perdoar todo condenado à morte que lhe apresentasse um enigma que ele próprio não pudesse resolver. A maior parte destes cantos são atribuídos ao período final dos Eddas, e é provável que os especialistas tenham razão quando afirmam que se trata apenas de exemplos de um artifício poético deliberado. O que não impede, todavia, que sua relação com os concursos de enigmas de um passado remoto seja demasiado evidente para ser negada.

Não é através da reflexão ou do raciocínio lógico que se consegue encontrar a resposta a uma pergunta enigmática. A resposta surge literalmente numa solução brusca — o desfazer dos nós em que o interrogador tem preso o interrogado. O corolário disto é que dar a resposta correta deixa impotente o primeiro. Em princípio, há apenas uma resposta para cada pergunta. Quando se conhecem as regras do jogo. é possível encontrar essa resposta.
As regras são de ordem gramatical, poética ou ritualística, conforme o caso. É preciso conhecer a linguagem secreta dos iniciados e saber o significado de todos os símbolos — roda, pássaro, vaca, etc. — das diversas categorias de fenômenos. Se for verificada a possibilidade de uma segunda resposta, de acordo com as regras e na qual o interrogador não tenha pensado, este último ficará em má situação, apanhado em sua própria armadilha. De outro lado, é possível uma coisa ser figurativamente representada de tantas maneiras que pode ser dissimulada num grande número de enigmas. Muitas vezes, a solução depende inteiramente do conhecimento dos nomes secretos ou sagrados das coisas, como o Alvissmál acima referido. Não nos interessamos aqui pelo enigma enquanto forma literária, mas apenas por sua qualidade lúdica e sua função na cultura. Não precisamos, portanto, investigar em profundidade as relações etimológicas e semânticas
entre os termos alemães e holandeses Ratsel e raadsel (enigma; em inglês, riddle), Rat e raad (conselho), erraten. (adivinhar) e raden, verbo holandês que ainda hoje significa ao mesmo tempo "aconselhar" e "resolver" (um enigma). Também em grego existem afinidades entre alvos (sentença, provérbio) e αινιγμα (enigma). Há uma estreita interligação cultural entre palavras como conselho, enigma, mito, lenda, provérbio etc. Mas basta lembrar de passagem estes aspectos, para imediatamente passar às diversas direções seguidas pelo enigma em sua evolução. Podemos concluir que originariamente o enigma era um jogo sagrado, e por isso se encontrava para além de toda distinção possível entre o jogo e a seriedade. Era ambas as coisas ao mesmo tempo: um elemento ritualístico da mais alta importância, sem deixar de ser essencialmente um jogo. À medida que a civilização vai evoluindo, o enigma bifurca-se em dois sentidos diferentes: de um lado a filosofia mística e de outro, o simples divertimento.
Mas não devemos pensar que nesta evolução se tenha verificado uma decadência da seriedade, passando a ser jogo, ou uma elevação do jogo até o nível da seriedade. Pelo contrário, o que se passa é que a civilização vai gradualmente fazendo surgir uma certa divisão entre dois modos da vida espiritual, aos quais chamamos "jogo" e "seriedade", e que originariamente constituía um meio espiritual contínuo, do qual surgiu a própria civilização O enigma ou, em termos menos específicos, a adivinhação, é, considerando à parte seus efeitos mágicos, um elemento importante das relações sociais. Como forma de divertimento social se adapta a toda a espécie de esquemas literários e rítmicos, como por exemplo as perguntas em cadeia, onde cada pergunta conduz a outra, do conhecido tipo "O que é mais doce que o mel?" etc. Os gregos gostavam muito da aporia como jogo de sociedade, ou seja, de fazer perguntas às quais era impossível dar uma resposta definitiva. Isto pode ser considerado uma forma moderada do enigma fatal. O "enigma da Esfinge" ainda ecoa vagamente nas formas mais tardias do jogo de enigmas, o tema da pena de morte permanece sempre no pano de fundo. Um dos exemplos mais característicos da maneira como a tradição o modificou é a estória do encontro de Alexandre o Grande com os "gimnosofistas" indianos. O conquistador tomou uma cidade que ousara oferecer resistência, e mandou que trouxessem à sua presença os dez sábios responsáveis por essa decisão. Deviam eles responder a um certo número de perguntas insolúveis feitas pelo próprio conquistador. Cada resposta errada significaria a morte, e o que respondesse pior
morreria primeiro. O juiz deste último aspecto deveria ser um dos dez sábios. Caso seu julgamento fosse considerado acertado, sua vida seria poupada. A maior parte das perguntas são dilemas de caráter cosmológico, variantes dos enigmas védicos sagrados. Por exemplo: Quem é mais, os vivos ou os mortos? Qual é o maior, a terra ou o mar? Qual apareceu primeiro, o dia ou a noite? As respostas são artifícios lógicos, e não exemplos de sabedoria mística. Quando, finalmente, foi feita a pergunta: "Quem respondeu pior?", o juiz respondeu: "Cada um pior do que o outro", inutilizando assim todo o plano, pois se tornava impossível que algum deles fosse morto.
A intenção de "pegar" o adversário é essencial no dilema, cuja resposta, obrigando o adversário a admitir alguma coisa que não estava prevista na formulação original, invariavelmente redunda em desvantagem para ele. O mesmo se verifica no enigma que comporta duas soluções, a mais óbvia das quais é obscena. No Atharvaveda encontram-se enigmas deste tipo.
Merece especial atenção uma das formas literárias derivadas do enigma, por mostrar de modo muito expressivo a relação entre o lúdico e o sagrado. Esta forma é o diálogo interrogativo filosófico ou teológico O tema é sempre o mesmo: um sábio que é interrogado por outro sábio ou um determinado número de sábios. Como Zaratustra, obrigado a responder às perguntas dos sessenta sábios do rei Vistaspa, ou Salomão, respondendo às perguntas da rainha de Sabá. Na literatura brâmane, um dos temas mais freqüentes é o do jovem discípulo, o bramatchárin, chegando à corte do rei e lá sendo interrogado pelos mestres, até o momento em que a sabedoria de suas respostas leva a uma inversão dos papéis, passando ele a interrogá-los, revelando-se assim como um mestre e não um discípulo. Desnecessário seria assinalar a extrema afinidade existente entre este tema e os concursos de enigmas rituais da época arcaica. Um dos contos do Mahabharata é especialmente característico a este respeito. Os Pandavas, em sua peregrinação através das florestas, chegam às margens de uma bela lagoa. O espírito que mora em suas águas proíbe-os de beber antes de responderem a algumas perguntas. Todos os que desprezam esta exigência caem mortos por terra. Ao que Yudhisthira se declara pronto a responder às perguntas do espírito, seguindo-se um jogo de perguntas e respostas através do qual é exposto quase todo o sistema ético dos hindus— notável exemplo da transição entre o enigma cosmológico sagrado e o jeu d'esprit. Uma visão correta das disputas teológicas da
Reforma, com a de Lutero contra Zwingli em Marburgo, em 1529, ou a de Theodore Beza contra seus colegas calvinistas e alguns prelados católicos em Poissy, em 1561, revelará que elas não passam de uma continuação direta de um imemorial costume ritualístico.
Os aspectos literários do diálogo interrogativo são especialmente interessantes no caso do tratado Fali chamado Milindapanha — as Questões do rei Menandro, um dos príncipes greco-indianos, que reinou na Bactriana no século II A. C. Embora este texto não fizesse oficialmente parte dos Tripitaka, os textos sagrados dos budistas meridionais, era altamente considerado tanto por estes últimos quanto por seus irmãos do Norte, e deve ter sido composto cerca do início da era cristã. Mostra-nos ele a disputa entre Menandro e o grande Arhat, Nagasena. A obra é de teor puramente filosófico e teológico, mas pela forma e pelo tom possui um parentesco com o concurso de enigmas. Quanto a este último aspecto, o preâmbulo é um exemplo típico:
Disse o rei: "Venerável Nagasena, quereis conversar comigo?"
Nagasena: "Fá-lo-ei, se Vossa Majestade conversar comigo da maneira como falam os sábios; mas não o farei, se Vossa Majestade conversar comigo da maneira como falam os reis."
"E qual a maneira como conversam os sábios, venerável Nagasena?"
"Ao contrário dos reis, os sábios não ficam irritados quando são postos entre a espada e a parede."
E o rei consente em discutir com ele em pé de igualdade, tal como no gaber do duque de Anjou. Alguns dos sábios da corte também participam; e o público é formado por quinhentos yonakas, isto é, jônios e gregos, assim como por oitenta mil monges budistas. Em atitude de desafio, Nagasena propõe um problema "que implica dois aspectos, muito profundo, difícil de resolver, mais duro que um nó". Os sábios do rei queixam-se de que Nagasena os atormenta com perguntas astuciosas de tendência herética. Muitas delas são típicos dilemas, atirados com um triunfante: "Veja Vossa Majestade se consegue sair desta!" E assim são passados em revista os problemas fundamentais da doutrina budista, expressos numa simples forma socrática.
O tratado inicial da Snorra Edda, conhecido como Gyl-fagmning, também pertence ao gênero do discurso teológico interrogativo. Gangleri inicia sua disputa com Har sob a forma de uma aposta, depois de ter começado
por atrair a atenção do rei Gylf com seus habilidosos malabarismos com sete espadas. O concurso de enigmas sagrado relativo à origem das coisas está ligado por transições graduais ao concurso de enigmas em que estão em jogo a honra, as posses ou a vida, e finalmente às discussões filosóficas e teológicas. Outras formas de diálogo se encontram intimamente relacionadas com estas últimas, tais como a litania e o catecismo das doutrinas religiosas. Não existe exemplo mais flagrante de inextricável mistura de todas estas formas
do que o cânon do Avesta, onde a doutrina é apresentada sobretudo numa série de perguntas e respostas trocadas entre Zaratustra e Ahura Mazda18. Especialmente os Yasnas, os textos litúrgicos para os rituais de sacrifício, conservam ainda numerosos vestígios da forma lúdica primitiva. Típicas questões teológicas, relativas à doutrina, à ética e ao ritual, alternam com velhos enigmas cosmogônicos, como em Yasna, 44. Todos os versos iniciam-se pela frase de Zaratustra: "Isto te pergunto, dá-me a resposta certa, Ahura!" As perguntas iniciam-se por: "Quem é aquele que. . .?" Por exemplo: "Quem é aquele que sustentava cá em baixo a terra, e lá em cima o céu, para que não caíssem?" "Quem é aquele que uniu a rapidez ao vento e às nuvens?" "Quem é aquele que criou a bendita luz e a escuridão ... o sono e a vigília?" Ao fim, uma passagem notável mostra claramente que nos encontramos perante vestígios de um antigo concurso de enigmas: "Isto te pergunto, dá-me a resposta certa, Ahura! Conseguirei eu o prêmio de dez éguas, um garanhão e um camelo que me foi prometido?" Além das questões cosmogônicas, há
outras de natureza mais catequética, relativas às origem e à definição da piedade, a distinção entre o bem e o mal, a pureza e a impureza, as melhores maneiras de lutar contra o espírito do mal etc. Aquele pastor suíço que, no país e no tempo de Pestalozzi, escreveu um catecismo para crianças intitulado
"Pequeno livro de adivinhas" (Ratselhüchleiit) não podia saber até que ponto sua idéia era próxima da verdadeira fonte de todos os credos e catecismos.
Os gregos da época mais tardia tinham plena consciência das relações existentes entre o jogo dos enigmas e as origens da filosofia. Clearco, um dos discípulos de Aristóteles, escreveu um tratado sobre os provérbios, o qual encerrava uma teoria dos enigmas, provando que originariamente o enigma fora um assunto filosófico. Diz ele: "Os antigos usavam-no como prova de sua educação (παιδεια)21, observação que nitidamente se refere ao jogo de enigmas de que acima tratamos. E, com efeito, não seria exagerado considerar os primeiros produtos da filosofia grega como derivados dos enigmas primitivos. Para Heráclito, o "filósofo obscuro", a natureza e a vida são um griphos, um enigma, e ele próprio é um decifrador de enigmas. As afirmações de Empédocles têm muitas vezes a ressonância da solução de enigmas místicos, e se revestem ainda de uma forma poética.


A POESIA E O LUDICO

Em qualquer civilização viva e florescente, sobretudo nas culturas arcaicas, a poesia desempenha uma função vital que é social e litúrgica ao mesmo tempo. Toda a poesia da antigüidade é simultaneamente ritual, divertimento, arte, invenção de enigmas, doutrina, persuasão, feitiçaria, adivinhação, profecia e competição. Praticamente, todos os motivos característicos da poesia e do ritual arcaicos encontram-se no terceiro Canto da epopéia popular finlandesa Kalevala. O velho e sábio Vainamõinen encanta o jovem presunçoso que se atreve a desafiá-lo para uma competição de feitiçaria. A primeira competição é sobre o conhecimento das coisas naturais, a segunda sobre o conhecimento esotérico relativo às
origens. Neste momento, o jovem Joukahainen pretende que parte da criação se deve a ele mesmo; ao que o velho feiticeiro canta-o para dentro da terra, para dentro do pântano, para dentro da água, e a água sobe-lhe até à cintura, até às axilas, depois até à boca, até que finalmente o jovem lhe promete sua irmã Aino. Só então Vainamõinen, sentado na "pedra da canção", canta durante mais três horas para desfazer sua poderosa mágica e libertar o ousado desafiante. Nesta façanha encontram-se unidas todas as formas de competição a que anteriormente nos referimos:
concurso de insultos, de jactância, a "comparação dos homens", a competição em conhecimento cosmogônico, a competição pela noiva, o teste de resistência, o ordálio— uma prova/teste que os juristas da idade média infringiam aos acusados, que caso vencessem eram considerados inocentes, segundo o juízo divino.- num jacto ao mesmo tempo selvagem e sóbrio de imaginação poética. A verdadeira designação do poeta arcaico é Vates, o possesso, inspirado por Deus, em transe. Estas qualificações implicam ao mesmo tempo que ele possui um conhecimento extraordinário. Ele é um sábio, sha’ir, como lhe chamavam os árabes. Na mitologia dos Eddas o hidromel que é preciso beber para se transformar em poeta é preparado com o sangue de Kvasir, a mais sábia de todas as criaturas, que nunca foi interrogada em vão. O poeta-vidente vai gradualmente assumindo as figuras do profeta, do sacerdote, do adivinho, do mistagogo e do poeta tal como o conhecemos; e também o filósofo, o legislador, o orador, o demagogo, o sofista e o mestre de retórica brotam desse tipo compósito primordial que é o Vates. Todos os poetas gregos arcaicos revelam vestígios de seu progenitor comum. Sua função é eminentemente social; falam como educadores e guias do povo. São os líderes da nação, cujo lugar foi mais tarde usurpado pelos sofistas A figura do antigo vates aparece sob muitos de seus aspectos no thulr da velha literatura nórdica, que corresponde ao thyle anglo-saxão. A moderna filologia alemã traduz essa palavra por Kultredner, que significa "orador do culto5. O exemplo mais típico do thulr é o starkaar, que Saxo Grammaticus corretamente traduz por vates. O thulr aparece, às vezes, como orador das fórmulas litúrgicas, em outras, como ator de um drama sagrado; em certas ocasiões, como sacerdote dos sacrifícios, e até como feiticeiro. Em outros casos, parece não passar de um poeta e orador de corte, tendo simplesmente a função do scurra — bobo ou jogral. O verbo correspondente, thylja, designa a recitação de textos religiosos, a prática da feitiçaria, ou simplesmente resmungar. O thulr é o repositório de todo o conhecimento mitológico e folclore poético. Ele é o velho sábio que conhece toda a história e tradição de um povo, que nas festas desempenha o papel de orador e é capaz de recitar de cor a genealogia dos heróis e dos nobres. Sua função específica é a peroração competitiva e o concurso de sabedoria. É sob esta forma que o encontramos como Unferd, no Beowulf. O mannjafnaar, a que antes nos referimos e os concursos de sabedoria entre Odin e os gigantes ou anões são abrangidos pelo thulr. Os conhecidos poemas anglo-saxões Widsid e O vagabundo parecem ser típicos produtos do versátil poeta da corte. Todas as características acima referidas entram muito naturalmente em nossa descrição do poeta arcaico, cuja função foi em todas as épocas ao mesmo tempo sagrada literária. Mas, fosse sagrada ou profana, sua função sempre se encontra enraizada numa forma lúdica. Os habitantes da Buru central, também chamada Rana, praticam uma forma de antífona cerimonial conhecida pelo nome de Inga fuka. Os homens e as mulheres sentam-se uns em frente dos outros e cantam pequenas canções, algumas delas improvisadas, acompanhados por um tambor. As canções são sempre de troça ou de desafio. São conhecidas nada menos de cinco espécies diferentes de Inga fuka. As canções assumem sempre a forma da estrofe e da antiestrofe, do ataque e da réplica, da pergunta e da resposta, do desafio e da desforra. Por vezes, assemelham-se a enigmas. O Inga fuka mais típico chama-se 'Inga fuka de preceder e seguir"; cada estrofe começa pelas palavras "perseguir" ou "seguir uns aos outros", como em certos jogos infantis. O elemento poético formal é constituído pela assonância que, repetindo a mesma palavra ou uma variação dela, estabelece uma ligação entre a tese e a antítese. O elemento puramente poético é constituído por uma alusão, por uma idéia brilhante surgida bruscamente, o jogo de palavras ou simplesmente o som das próprias palavras, sendo que neste processo o sentido pode perder-se completamente. Esta forma de poesia só pode ser descrita e compreendida em termos de jogo, embora obedeça a um complexo sistema de regras prosódicas. Quanto ao conteúdo, as canções são sobretudo de inspiração amorosa, ou pequenas homilias sobre a prudência e as virtudes, ou ainda de caráter satírico. Embora exista todo um repertório de Inga fukas tradicionais, a essência do gênero é a improvisação. Também acontece que os versos já existentes sejam aperfeiçoados por adições e correções. O virtuosismo é grandemente considerado, não faltando a habilidade artística. Quanto ao sentimento e ao tom, as traduções fazem lembrar o pantun malaio, o qual deve ter exercido uma certa influência na literatura de Buru, e também o muito mais remoto hai-kai japonês.
Além do Inga fuka, existem em Rana outras formas de poesia, todas elas baseadas nos mesmos princípios formais, mas consistindo, por exemplo, em longas altercações entre as famílias da noiva e do noivo, durante a troca cerimonial de presentes que se realiza por ocasião do casamento a forma japonesa de poesia vulgarmente conhecida como hai-kai,
pequeno poema de apenas três versos, com cinco, sete e cinco sílabas sucessivamente, que evoca uma delicada impressão do mundo das plantas ou dos animais, da natureza ou do homem, às vezes com um toque de lirismo melancólico ou de nostalgia, outras, com um rasgo de ligeiro humor. Basta dar aqui dois exemplos:

Quantas coisas
Em meu coração!
Deixa-as flutuar
No fremir do salgueiro!

Ao sol,
secam quimonos.
Oh,
as pequenas mangas
Da criança morta!

O hai-kai foi certamente, em sua origem, um jogo de rimas em cadeia, iniciado por um jogador e continuado pelo seguinte. Um exemplo característico da fusão entre o jogo e a poesia é ainda hoje conservado no método tradicional de recitação do Kalevala finlandês. Lõnroth, que coligiu as canções, encontrou ainda em vigor o curioso costume de dois cantores se sentarem num banco um em frente do outro, segurando as mãos um do outro e balançando-se para a frente e para trás ao mesmo tempo que vão competindo em conhecimentos das estâncias. Ás sagas islandesas descrevem uma forma semelhante de recitação (Eddas escrito em nórdico antigo).
Todas estas formas tiveram um grande desenvolvimento no extremo oriente. Em sua lúcida interpretação e reconstituição dos textos da China antiga, Marcel Granet oferece-nos um quadro de todo o sistema de competições poéticas entre rapazes e moças que floresceu na época pastoril. No Anam foi descoberto um sistema semelhante ainda vigente, o qual foi descrito com grande exatidão pelo erudito anamita Nguyen van Huyen12. Aqui, o "argumento" poético, que pouco encobre o namoro declarado, possui freqüentemente um caráter altamente sofisticado, baseado numa série de provérbios que, aparecendo no final de cada estância, servem como testemunhos irrefutáveis da causa do amante. Encontra-se uma forma idêntica nos débats da França do século XV. Todavia há outras formas de poesia, especialmente no Extremo Oriente, que devem ser consideradas atividades culturais realizadas dentro de um espírito agonístico. Como por exemplo quando se impõe a alguém a tarefa de improvisar um poema a fim de quebrar um "feitiço" ou sair de uma situação difícil. O que importa aqui não é que esse costume tenha ou não chegado a possuir alguma importância prática para a vida quotidiana, e sim que o espírito humano tenha inúmeras vezes visto neste motivo lúdico, que é aparentado tanto ao enigma "fatal" quanto à aposta, uma maneira de exprimir, e talvez de resolver, os intrincados problemas da vida, e que a arte poética, sem visar diretamente a um efeito estético, tenha encontrado neste jogo o mais fértil solo para seu desenvolvimento. Citemos alguns exemplos tirados da obra de Nguyen van Huyen: Os alunos de um certo Dr. Tan precisavam sempre passar, em seu caminho para a escola, pela casa de uma moça que morava ao lado do professor. Quando passavam diziam sempre: "És adorável, és realmente um amor!"
Isto enfurecia a moça, a qual um dia esperou por eles e lhes disse: "Bem, se vocês me amam, vou dar a vocês uma frase. Se algum de vocês for capaz de responder-me a frase correspondente dar-lhe-ei meu amor, caso contrário vocês se comprometem a dar sempre a volta para evitar passar diante de minha porta." Ela recitou a frase, e nenhum dos estudantes foi capaz de dar a resposta certa, de modo que no futuro viram-se obrigados a dar sempre uma volta à roda da casa do professor15.
Trata-se de algo semelhante ao svayamvara épico, ou à corte feita a Brunilde, que aqui temos sob a forma de um idílio aldeão de estudantes anamitas.
Khanh-du, da dinastia Tran, foi demitido de seu cargo devido a uma falta grave, e tornou-se vendedor de carvão em Chi Linh. Quando uma vez, durante uma de suas campanhas, o Imperador passou por essa região, encontrou o antigo mandarim e ordenou-lhe que fizesse um poema sobre o comércio do carvão. Khanh-du fez imediatamente o poema, ao que o Imperador, profundamente comovido, devolveu-lhe seus antigos títulos.
A improvisação de versos em frases paralelas era um talento sem o qual ninguém podia facilmente passar no Extremo Oriente. O sucesso de uma embaixada anamita em Pequim podia por vezes depender do talento do embaixador para a improvisação em verso. Todos os membros das embaixadas precisavam ser constantemente preparados para toda a espécie de perguntas, e saber as respostas para as mil e uma charadas e enigmas que ao Imperador ou a seus mandarins apetecia perguntar17. Era a diplomacia sob forma lúdica.
O jogo de perguntas e respostas em forma de verso pode também ter uma função de armazenamento de toda uma massa de conhecimentos úteis. Uma moça acaba de dizer sim a seu noivo, e ambos pretendem abrir juntos uma loja. O noivo pede-lhe para lhe dizer os nomes dos medicamentos, e todo o tesouro da farmacopéia se segue em verso. A arte da aritmética, o conhecimento das diversas mercadorias e o uso do calendário na agricultura
também podem ser transmitidos de forma extremamente sucinta por este processo. As vezes, os namorados interrogam-se mutuamente, sobre questões de literatura. Fizemos notar acima que todas as formas de catecismo se relacionam diretamente com o jogo dos enigmas. O mesmo é também o caso do exame, que sempre desempenhou um papel extraordinariamente importante na vida social do Extremo Oriente. Toda civilização só muito lentamente vai abandonando a forma poética como principal método de expressão das coisas importantes para a vida da comunidade social. A poesia sempre antecede a prosa; para a expressão de coisas solenes ou sagradas, a poesia é o único veículo adequado. Não são apenas os hinos e os provérbios que são postos em verso, são também extensos tratados com por exemplo os sutras e sastras da índia antiga, ou os primeiros produtos da filosofia grega. Empédocles encerra todo seu saber em um poema, e ainda Lucrécio continua utilizando a mesma forma. Talvez, em parte, a preferência pelos versos tenha sido determinada por considerações utilitárias: uma sociedade sem livros acha mais fácil memorizar seus textos desta maneira. Mas existe uma razão mais profunda, a saber que a própria vida da sociedade arcaica possui como que uma estrutura métrica e estrófica. A poesia continua ainda hoje sendo o modo de expressão mais natural para as coisas mais "elevadas". Até 1868, os japoneses costumavam escrever em forma poética as partes mais importantes dos documentos de Estado
Os historiadores do direito prestaram uma atenção especial aos vestígios de poesia no direito, pelo menos na tradição germânica. Todo estudante das leis germânicas conhece o antigo texto jurídico frisão em que uma cláusula relativa às diversas "necessidades" ou ocasiões de necessidade nas quais é preciso vender a herança de um órfão, passa de repente a um estilo lírico aliterativo:

"A segunda necessidade é quando o ano se torna custoso
e a fome ardente invade a terra,
e a criança vai morrer de fome.
Pode, então, a mãe pôr à venda o patrimônio da criança,
comprando para ela uma vaca, trigo etc.
A terceira necessidade é quando a criança está nua
e sem teto,
e vem o escuro nevoeiro
e o frio inverno, e cada homem se abriga em seu lar,
num quente refúgio,
e o animal selvagem procura a árvore oca
e o refúgio das montanhas,
para salvar sua vida.
Então a criança menor chorará
e gritará,
e lamentará a nudez de seus membros
e sua falta de abrigo,
e a ausência de seu pai,
que deveria tê-la defendido contra a fome
e as frias névoas do inverno, e
que agora jaz numa funda e escura cova,
sob o carvalho e a terra,
preso por quatro pregos."

Creio que aqui estamos perante algo que não é apenas uma ornamentação deliberada, mas sobretudo a circunstância de a formulação da lei pertencer ainda àquela exaltada esfera do espírito em que a forma poética é o modo natural de expressão. Devido precisamente à sua brusca entrada na poesia, este exemplo frisão é típico de muitos outros; em certo sentido, é mais típico do que o Tryggdamal da antiga Islândia que, numa série de estrofes aliterantes, narra o restabelecimento da paz, comunica o pagamento de uma indenização, proíbe energicamente novas lutas e nesse momento, o propósito da declaração de que os "perturbadores da paz" serão em toda a parte considerados fora da lei, passa a ampliar este "em toda a parte" por meio de uma série de imagens poéticas:

"Onde quer que os homens
cacem lobos,
vão à igreja
os cristãos,
no recinto sagrado
sacrifiquem os pagãos,
arda o fogo,
reverdesça o campo,
a criança chame pela mãe,
a mãe alimente o filho,
se cuide o fogo da lareira,
naveguem os barcos,
cintilem os escudos,
brilhe o sol,
caia a neve,
cresçam os pinheiros,
voe o falcão
no longo dia de primavera
(vento forte
em ambas as asas),
onde quer que o céu
se eleve,
se construa a casa,
sopre o vento,
corram para o mar as águas,
semeiem o trigo os servos"

Toda poesia tem origem no jogo: o jogo sagrado do culto, o jogo festivo da corte amorosa, o jogo marcial da competição, o jogo combativo da emulação da troca e da invectiva, o jogo ligeiro do humor e da prontidão.

O que a linguagem poética faz é essencialmente jogar com as palavras. Ordena-as de maneira harmoniosa, e injeta mistério em cada uma delas, de modo tal que cada imagem passa a encerrar a solução de um enigma Na cultura arcaica, a linguagem dos poetas é o mais eficaz dos meios de expressão, desempenhando uma função muito mais ampla e vital do que a mera satisfação das aspirações literárias. Põe o ritual em palavras, é o árbitro das relações sociais, o veículo da sabedoria, da justiça e da moral. E faz tudo isto sem prejudicar seu caráter lúdico, pois o próprio quadro da cultura primitiva é um círculo lúdico. Nesta fase, as atividades culturais realizam-se sob a forma de jogos sociais; mesmo as mais utilitárias gravitam cm torno de um ou outro dos grupos lúdicos. Mas, à medida que a civilização vai ganhando maior amplitude espiritual, as regiões nas quais o fator lúdico é fraco ou quase imperceptível desenvolvem-se à custa daquelas em que ele tem livre curso.
Nunca se perderam inteiramente as íntimas relações entre a poesia e o enigma. Nos skalds islandeses o excesso de clareza é considerado uma falha técnica. Os gregos também exigiam que a palavra do poeta fosse obscura. Entre os trovadores, em cuja arte a função lúdica é mais patente do que em qualquer outra, são atribuídos méritos especiais ao trobardus — o que à letra significa "poesia hermética"

A representação em forma humana de coisas incorpóreas ou inanimadas é a essência de toda formação mítica e de quase toda a poesia. Neste sentido, a personificação surge a partir do momento em que alguém sente a necessidade de comunicar aos outros suas percepções. Assim, as concepções surgem enquanto atos da imaginação.
Haverá razões para chamar a este hábito inato do espírito, a esta tendência para criar um mundo imaginário de seres vivos (ou talvez um mundo de idéias animadas), um jogo do espírito ou um jogo mental?
Tomemos como exemplo uma das formas mais elementares da personificação, as especulações míticas a respeito da origem do mundo e das coisas, nas quais a criação é concebida como obra de alguns deuses a partir do corpo de um gigante universal. Encontramos esta concepção no Rig-Veda c no primeiro Edda. Atualmente, a filologia tende a considerar os textos onde se encontra esta lenda como uma redação literária ocorrida em época relativamente tardia. O décimo hino do Rig-Veda nos oferece uma paráfrase mística de uma matéria mítica primordial, paráfrase feita pelos sacerdotes sacrificadores, que a interpretaram em termos ritualísticos. O Ser primordial, Purusha (isto é, o homem) serviu de matéria para o universo1. Todas as coisas foram formadas a partir deste corpo, "os animais do ar, e as florestas e as aldeias"; "a lua veio de seu espírito; o sol, de seu olho; de sua boca vieram Indra e Agni; de seu hálito, o vento; de seu umbigo, a atmosfera; de sua cabeça, o céu; de seus pés, a terra; e de seus ouvidos, os quatro quadrantes do horizonte; assim eles (os deuses2) fizeram os mundos". Queimaram Purusha como oferenda. O hino é uma mistura de antigas fantasias míticas e de especulações místicas de uma fase mais tardia da cultura religiosa. Note-se de passagem que num dos versos, o décimo primeiro, surge repentinamente a nossa já conhecida interrogação: "Quando dividiram eles Purusha, em quantas partes o dividiram eles? Como foi chamada sua boca, e seus braços, e suas coxas, e seus pés?" Por que os homens subordinam as palavras à métrica, à cadência e ao ritmo? Se respondermos que é por causa da beleza ou da emoção, estaremos deslocando o problema para um terreno ainda mais difícil. Mas se respondermos que os homens fazem poesia porque sentem a necessidade do jogo social já
estaremos mais próximos do alvo. A palavra rítmica nasce dessa necessidade. Só na atividade lúdica da comunidade a poesia desempenha uma função vital e possui seu pleno valor, e estes se perdem à medida em que os jogos sociais perdem seu caráter ritual ou festivo. Elementos como a rima e o dístico só adquirem sentido dentro das estruturas lúdicas intemporais e onipresentes de que derivam: golpe e contragolpe, ascensão e queda, pergunta e resposta, numa palavra, ritmo. Sua origem está inseparavelmente ligada aos princípios da canção e da dança, os quais por sua vez fazem parte da imemorial função do jogo. Todas as qualidades da poesia reconhecidas como próprias, como a beleza, o caráter sagrado, a magia, são desde início abrangidas pela qualidade lúdica fundamental. Segundo os imortais modelos gregos, distinguimos na poesia três grandes gêneros, o lírico, o épico e o dramático. O lírico é o que permanece mais próximo da esfera lúdica da qual todos derivam. Aqui, o lírico deve ser tomado cm sentido extremamente amplo, incluindo, além do gênero enquanto tal, todos os modos que exprimem o arrebatamento. Na escala da linguagem poética, a expressão lírica é a mais distante da lógica e a mais próxima da música e da dança. É a linguagem da contemplação mística, dos oráculos e da magia. É nela que o poeta experimenta mais intensamente a sensação de ser inspirado de fora, é nela que se encontra mais próximo da suprema sabedoria, mas também da demência. O abandono total da razão e da lógica é característico da linguagem dos sacerdotes e dos oráculos entre os povos primitivos, chegando muitas vezes a ser uma algaraviada incompreensível.
Emile Faguet refere-se algures a "le grain de sottise nécessaire au lyrique moderne". Mas não é só o poeta lírico moderno que precisa dela; todo o gênero forçosamente precisa não estar submetido às limitações do intelecto. Um dos traços fundamentais da imaginação lírica é a tendência para o exagero. A poesia precisa ser exorbitante.

São necessárias mais algumas explicações sobre o papel da competição na evolução da arte. Praticamente todos os exemplos conhecidos de competições em que foram dadas mostras de uma habilidade espantosa pertencem mais à mitologia, à lenda e à literatura do que propriamente à história da arte. O gosto pelo exorbitante e o miraculoso encontra seu terreno mais fértil nas estórias fantásticas contadas acerca dos artistas do passado. Os grandes portadores de cultura dos tempos primitivos, segundo as mitologias, inventaram todas as artes e ofícios que hoje constituem os tesouros da civilização em conseqüência de uma ou outra espécie de  conquista, muitas vezes com risco da própria vida. Os Vedas dão a seu deus faber um nome especial: tvashtar, ou seja, aquele que faz. Foi ele que forjou o raio (vajra) para Indra. Participou de um concurso de destreza com os três rbhu ou artífices divinos, os quais fizeram os cavalos de Indra, o carro dos Asvins (os Dioscuru dos hindus) e a vaca milagrosa de Brhaspati. Os gregos tinham uma lenda sobre Politecnos e sua esposa Aeden, os quais se gabavam de amar-se mais um ao outro do que Zeus e Hera, ao que Zeus lhes enviou Eris (a Emulação), que os induziu a competir um com o outro em
toda a espécie de trabalhos artísticos. Os anões artífices da mitologia nórdica pertencem à mesma tradição, assim como Wieland o Ferreiro, cuja espada era tão afiada que era capaz de cortar novelos de lã flutuando num rio. Assim também Dédalo, que sabia fazer tudo: construiu o Labirinto, fez estátuas que caminhavam, e uma vez, perante o problema de fazer passar um fio pelas sinuosidades de uma concha, resolveu-o amarrando o fio a uma formiga. Aqui, a proeza técnica encontra-se ligada ao enigma; mas, enquanto o bom enigma encontra solução num contato espiritual inesperado e surpreendente, num espécie de curto-circuito mental, a primeira muitas vezes se perde no absurdo, como na lenda da corda de areia usada para coser pedaços de pedra relatos de milagres e o espírito lúdico.
Além de ser um tema dos mais freqüentes no mito e na lenda, o artesanato competitivo desempenhou um papel perfeitamente claro no desenvolvimento efetivo das artes e das técnicas. A competição em destreza, narrada pelo mito, que se estabeleceu entre Politecnos e Aedon teve de fato seus correspondentes na realidade histórica, como a competição entre Parrhasios e seu rival na ilha de Samos, para ver quem era capaz de executar a melhor representação da luta entre Ajax e Ulisses, ou a que se realizou nas festas Pítias entre Panainos e Timágoras de Calcis. Um outro exemplo é o da competição entre Fídias, Policleto e outros para a execução da mais bela estátua de uma Amazona. O caráter autenticamente histórico desses duelos é comprovado por diversos epigramas e inscrições.
No pedestal de uma estátua de Nice pode ler-se: "Isto foi feito por Panainos que foi também o autor da acrotheria do templo, tendo com isso ganho o prêmio


O lúdico está presente em todas as atividades humanas. Está inserido na esfera do universo e na alma humana, sendo uma representação dos fatos espirituais que nos cercam, uma forma poética que faz parte da imaginação humana, indissociável da essência humana, concedido a nós como expressão de liberdade do espírito e da alma humana, assim como expressão da liberdade e da vida dos seres viventes. A brincadeira é a morte da predestinação absoluta, do determinismo, da soberania absoluta, do destino, fim da mentira da imutabilidade da existência ou da pré-existência de um roteiro que determine e delimite a essência da vida.  O lúdico é uma realidade espiritual e psicológica, que transcende a vida, que apoia a capacidade de crescermos, aprendermos e amadurecermos, ele nos capacita à realidade, nos prepara para vivermos e representa numerosas faces do universo em que nascemos, vivemos e morremos. É uma dimensão da alma humana. A representação, o simbolismo, os arquétipos, o drama, a dramatização, o teatro, a dança, a musica,  a poesia, o canto, as artes, a escrita, a linguagem, a jurisprudência, as relações humanas, incluindo a paixão, estão permeadas pelo lúdico.

Nas Escrituras veremos a apresentação de inúmeras realidades espirituais através do lúdico.
Quando Sansão elabora o enigma aos convidados de seu casamento com a filisteia, quando ele arranca as portas da cidadela de Gaza está fazendo galhofa com seus habitantes, quando ele mente para Dalila por diversas vezes está brincando com ela. Quando Hamã o agagita lança sortes, ou dados, para decidir a data da matança dos judeus, está num universo ludico. A ABERTURA DO LIVRO DE JÓ É PROPOSITADAMENTE LUDICA.  Pela arbitrariedade com que a o homem moderno trata o lúdico, não compreende o “jogo” que está sendo “disputado” entre Deus e Satanás. O jogo é estigmatizado como algo ruim, é desprezado como brincadeira, mas ele é bem maior que algumas de suas percepções, ele é abrangente, ele é uma representação cósmica, “dentro de uma lampadazinha” parafraseando o Gênio de Aladim.  O Espírito de Deus não lê ilegitimidade em representar a realidade espiritual como uma “disputa” porque é um pedagogo perfeito que “descomplica” para nós conceitos abstratos além de nossa capacidade e juízo. O lúdico representa o mistério, a alegria, o deslumbramento, de um modo soberbo, genial, envolvendo no mesmo instante nossos sentidos e nossa imaginação.  Todo ENIGMA das Escrituras que solicita resolução é lúdico, assim como diversas profecias que adquirem caráter lúdico, propositadamente. Jeremias e Isaias emitem “zombarias” proféticas, como uma disputa de insultos, contra os falsos profetas; o falso profeta Ananias tece um colar de contas de madeira, e cria uma pequena peça teatral para representar uma profecia, colocando-o ao redor do pescoço de Jeremias. Davi se auto-convida para uma disputa entre campeões com Golias, quem vencesse representaria seu exército e teria outro como derrotado.

Se ele puder pelejar comigo, e me ferir, a vós seremos por servos; porém, se eu o vencer, e o ferir, então a nós sereis por servos, e nos servireis. 1 Samuel 17:9

Paulo fala que a carreia cristã é como uma prova e que só podem permanecer nelas aqueles que “militam segundo suas regras” declarando o universo ludico ao qual pertence a vida espiritual cristã. Anjos são vistos em visões dançando, cantando, tocando instrumentos, pulando de alegria, deslumbrados com a salvação humana, em cenas de ludicas. Jesus disputava com os rabinos fariseus e saduceus utilizando sua linguagem técnica, suas técnicas de apodo, parábolas, questionamentos são de notório conhecimento rabínico, ele lança-lhes questões de acordo com suas regras de interpretação e ensino. Apocalipse lança mão de uma solene profecia em que a figura do vencedor de um jogo é o símbolo daqueles que receberão o premio maior que é a Vida Eterna.

Parte superior do formulário
Quem vencer, herdará todas as coisas; e eu serei seu Deus, e ele será meu filho. Apocalipse 21:7


A Lei é o estabelecimento das regras e a vitória de Cristo contra o pecado é a vitória de um jogador que disputou contra o império das mortes segundo as regras humanas e o venceu dentro do domínio do tempo, num lugar determinado, a terra. Ele vence um terrível adversário sem quebrar as regras que ele mesmo impôs ao universo que em muitos aspectos é lúdico.

Quem vence um jogo, recebe ao final uma recompensa, tal é o estabelecido no nosso ludico universo:

Quem tem ouvidos, ouça o que o Espírito diz às igrejas: O que vencer não receberá o dano da segunda morte. Apocalipse 2:11
Quem tem ouvidos, ouça o que o Espírito diz às igrejas: Ao que vencer, dar-lhe-ei a comer da árvore da vida, que está no meio do paraíso de Deus. Apocalipse 2:7
Ao que vencer lhe concederei que se assente comigo no meu trono; assim como eu venci, e me assentei com meu Pai no seu trono. Apocalipse 3:21


E ao que vencer, e guardar até ao fim as minhas obras, eu lhe darei poder sobre as nações,

Jó lembra-se dos dias de sua felicidade como uma criança brincando diante de Deus e de seus adversários:

Se eu ria para eles, não o criam, e a luz do meu rosto não faziam abater; Jó 29:24

Jesus em uma de suas parábolas em Lucas dá o exemplo de uma atividade lúdica, uma batalha em que o vencedor despoja das roupas ao perdedor

Mas, sobrevindo outro mais valente do que ele, e vencendo-o, tira-lhe toda a sua armadura em que confiava, e reparte os seus despojos. Lucas 11:22

A zombaria dos derrotados num jogo, como crianças que riem quando as outras perdem é retratada em Provérbios:
Também de minha parte eu me rirei na vossa perdição e zombarei, em vindo o vosso temor. Provérbios 1:26
Apocalipse faz clara referencia ao lúdico da existência, ao ludico da profecia, da profecia como ensino de caráter ludico quando declara:

Quem tem ouvidos, ouça o que o Espírito diz às igrejas: Ao que vencer darei a comer do maná escondido, e dar-lhe-ei uma pedra branca, e na pedra um novo nome escrito, o qual ninguém conhece senão aquele que o recebe. Apocalipse 2:17

Quando Ester caminha corajosamente no jardim persa d Xerxes o fará contra todas as regras vigentes arriscando a sua vida num perigoso jogo, numa cartada triunfal, o prêmio é a salvação de seu povo e a derrota significaria a perda de sua cabeça. Cerca de três anos separam a ultima vez que Xerxes a visitara no palácio as mulheres, e ela sem ser convidada entrará num jardim proibido, exclusivo do rei, desejando obter uma audiência. Sua caminha é o inicio do jogo e existem dois possíveis resultados, mas necessitará que o rei interfira nas regras do jardim, com uma peça única, seu cetro, a única coisa em todo reino da persa que pode interferir no cumprimento de uma lei pré-estabelecida pelos persas. Para sorte de Ester, antes que toquem na moça, ele levanta seu cetro real.

Isaías 25 concede uma visão lúdica e assombrosa da grande vitória do Cordeiro sobre a morte no monte calvário:

Como o calor em lugar seco, assim abaterás o ímpeto dos estranhos; como se abranda o calor pela sombra da espessa nuvem, assim o cântico dos tiranos será humilhado.
E o SENHOR dos Exércitos dará neste monte a todos os povos uma festa com animais gordos, uma festa de vinhos velhos, com tutanos gordos, e com vinhos velhos, bem purificados.
E destruirá neste monte a face da cobertura, com que todos os povos andam cobertos, e o véu com que todas as nações se cobrem.
Aniquilará a morte para sempre, e assim enxugará o Senhor DEUS as lágrimas de todos os rostos, e tirará o opróbrio do seu povo de toda a terra; porque o SENHOR o disse.

A ceia de Cristo é uma atividade lúdica, uma representação de um evento profético que simboliza a vitória de Cristo contra a morte. A páscoa é uma festa, uma grandiosa festa em que cordeiros eram imolados, numa profunda representação. Antes do calvário o mundo mágico estava a mercê do cântico dos tiranos. Os grandes déspotas recebiam hinos em louvor a sua história e glória, eles se magnificavam, pois queriam ser lembrados como deuses-na-terra, como potentados, tendo seus nome gravados em rochas, suas imagens esculpidas em mármore para perpetuar a memória de seus grandes feitos. Para a população escravizada os cânticos dos tiranos era-lhes dolorosos. O mundo submisso a poderes malignos viu as civilizações praticarem atos de profunda indignidade. Atos de tremenda crueldade. Falsas religiões, falsos deuses, a escravidão, as guerras, as maldições rogadas pelos magos e feiticeiros. Na cruz o inferno é vencido e Deus concede sua Graça e sua Misericórdia, concedendo dons aos homens, e concede ao ser humano poder contra as hostes, potestades, poderes e soberanias. Paulo exaltará o momento do monte com um cântico de escárnio, uma zombaria profética:

“Ó morte, ó morte, onde está teu aguilhão? E ó morte, onde deixastes cair as tuas armas?”

O cântico dos tiranos foi substituído pelo cântico da vitória. Que é de caráter lúdico.

Veja que apesar da dor e da vergonha da morte na cruz, ela simboliza um banquete. Jesus se refere ao banquete que celebra sua morte, a ceia. O Cordeiro era sacrificado no altar pelo sumo-sacerdote no dia de Yom Kipur às três horas da tarde, uma garrafa de vinho aromático, com especiarias, era derramado no chão no mesmo instante e logo após ter entrado com o sangue no lugar santíssimo ele repartiria o cordeiro com os familiares dos ofertantes, no caso do cordeiro da páscoa, com os sacerdotes auxiliares e seus familiares.  O vinho derramado no chão após o sacrifício do cordeiro era um vinho antigo.  Vinho guardado nas recamaras do templo por anos. 
A morte é ZOMBADA profeticamente. Uma imagem de uma criança rindo após a derrota de um adversário numa brincadeira. Para que entendamos o caráter lúdico das coisas criadas.

A cena em que Rute é “resgatada” das mãos de um parente de Boaz é uma cena lúdica. A cerimonia do pé descalço é uma representação da exoneração voluntária do direito de casar com a viúva.
O termo que Paulo usa em Romanos “Jactancia” é a parola dos competidores que exaltam sua próprias qualidades físicas e atléticas em detrimento dos adversários, numa competição esportiva.

 A poesia é filha da profecia, é baseada em jogos de palavras e nas Escrituras se reveste de solenidade, resolução de enigmas, formas e paralelismos especiais. A poesia das Escrituras é “formosa” ela possui dimensões estéticas profundas que vão desde a sonoridade das palavras, a construção das estrofes. Toda palavra dos profetas é em forma de poesia, incluindo as palavras de Jesus. Tudo que é Jesus fala ENSINANDO é inabalavelmente conectado com a poesia oriental e suas formas. È comum o uso do paralelismo hebraico, dos quiasmas, de provérbios numéricos, das perguntas enigmáticas, das pequenas histórias, o uso de parábolas. A ligação entre Jesus e a poesia, entre Cristo e o dom Palavra de Conhecimento, manifesto nas suas parábolas, que na verdade representavam ENIGMAS a serem interpretados para serem entendidas  que uma profecia do Antigo Testamento define o modo com que Cristo proporá o seu ensino e doutrina:

Parte superior do formulário
Abrirei a minha boca numa parábola; falarei enigmas da antiguidade. Salmos 78:2

A linguagem profética é cheia de símiles e parábolas, essa lei é espiritual faz parte do mistério profético, do mistério da poesia e do mistério do ludico:

Falei aos profetas, e multipliquei a visão; e pelo ministério dos profetas propus símiles. Oséias 12:10

E aconteceu que Jesus, concluindo estas parábolas, se retirou dali. Mateus 13:53
Então Jesus, tomando a palavra, tornou a falar-lhes em parábolas, dizendo: Mateus 22:1
E ensinava-lhes muitas coisas por parábolas, e lhes dizia na sua doutrina: Marcos 4:2
Tudo isto disse Jesus, por parábolas à multidão, e nada lhes falava sem parábolas; Mateus 13:34

O LUDICO EM CANTARES


A beleza divina evoca o lúdico. Toda a Escritura é permeada pelo lúdico, pela poesia, pelo ritmo, pela musica, pela harmonia, pelo mistério, utilizando do conceito do jogo, com todos seus elementos, incluindo o mistério, o espaço delimitado, as regras, a representação, a tensão, a recompensa, a nobreza, o esforço, as dificuldades, a realização, a alegria, o limite de tempo, a vitória, a derrota, os adversários.

Vemos isso nas danças de Miriã, na ritmada e longa conversa das moças na entrada de Siló, que propositadamente alogam a conversa para reter um pouco mais o belo jovem Saul, vemos isso nas tentativas de “burlar” os desígnios divinos pagando uma recompensa ao mago Balaão e na lúdica cena da repreensão de sua mula. Há em Cantares um jogo com o som das palavras, em que o poema é construído a partir da palavra Sunamita, que em hebraico é o feminino de Salomão. Shelomite, Shelomom. Em Isaias há uma profecia que imita uma cartilha de alfabetização, simulando os sons do aprendizado da língua aramaica. Há o lúdico da cena em que Ezequiel fica estático da manhã até o entardecer, paralisado como uma estátua viva, parando a emissão de uma profecia que inicia pela manhã e que só dará continuidade ao entardecer, recomeçando do exato ponto onde parou, como se o tempo não tivesse acontecido para ele.   
Cantares é em absoluto, lúdico. O romance é um jogo em que a alma usa todos os recursos para conquistar a pessoa amada, disputando o coração desta segundo as regras do amor, que não são conhecidas por ninguém. O romance traduz um mistério, uma aceitação que depende de leis invisíveis, regras não escritas e sentimentos indeterminados. Ele é frágil, possui um tempo determinado no qual acontece, que não é definido, casais se apaixonam em segundos, minutos, horas, dias semanas! O livro é uma canção, nele ocorrerão danças e cantigas, está acontecendo uma semana de festas, o rei se disfarçará uma brincadeira, a moça correrá atrás de raposas, os irmãos correrão atrás da irmã fujona, Salomão fugirá dos afazeres, as raposas fugirão de Sunamita, Salomão fugirá de Sunamita que fugindo dos irmãos, correrá em direção do amado.  A festa das vinhas que é o palco da maior de todas as Canções é banhada em vinho, cercada de banquetes, coroada de milhares de visitantes e cercada de intensa e frenética atividade na natureza, pastoris, na cidade, no palácio.  O rei a conhecerá, BRINCANDO nas vinhas e ele correrá atrás dela BRINCANDO também. O jogo de palavras amorosas de cantares é uma paquera sem fim. A primeira frase que ela dirige a Salomão é uma paquera desavergonhada.  “Porque seria eu como a que ERRA aos pés do rebanho de teus companheiros?”. Quando ela “conjura” as filhas de Jerusalém, é como uma cantiga de roda, em que o refrão é repetido para evitar que alguém seja tirado da brincadeira. O livro é um drama, se desenvolve como uma comédia, apresenta-se como uma canção, era recitado em casamentos e festas de Israel, era acompanhado de instrumentos e possuía uma melodia que hoje é por nós desconhecida.

Cantares apresenta-nos através do lúdico uma realidade misteriosa e transcendente, de  Deus amando sua Igreja brincando com ela. Dançando com ela. Festejando sua alegria, comunhão e amor.


Welington José ferreira
Welington Corporation
Da apostila Cantares de Salomão.